domingo, 7 de julho de 2013

BARCA MELANCÓLICA

A Nave dos Loucos, de Hieronymus Bosch  (1450-1516)

Poesias Selecionadas
do livro Barca Melancólica
de José Chadan



O VINHO

O vinho acabou
E nele a esperança
Entre vida e morte, sou eu a semelhança?
De mais esta dança
Que não sei se começa quando descansa
Se cambaleia ou se dança
No cálice da dúvida, uma certeza
O vinho acabou



A RODA

Pelo sofrimento a busca do sentido
Vida e morte se revezam e no giro
Das mãos a razão foge

Eterno esquecimento seria alívio,
Pior é amargor sem sentido

Na espera que malogra,
Justos e injustos beiram a negação
Mas detrás da roda e nela,
A mais bela conversão:
O sentido mais sublime e não menos absurdo
De encontrar o amor sem restrição



DESERTO

Flecha atirada balbucia no vento
Nos muros da cidade, o pacto perfeito
Selado num beijo
Conjuras-me que a guerra é ganha?
No teu arco ó estranha, perpasso
Tuas profundezas queimam a seta
Que na fenda me rende
Sarcástica não mata, geme
Com sede
Refresco a língua na taça do teu ventre
Nos dedos unguento
E a ingrata parte
Na boca? O gosto do selo



INQUISIÇÃO

Lançado no calabouço, o esquadrinho
Centímetro a centímetro
Não grande, seu chão esguio
De pedra e paredes
Dava importância agora a coisas sem sentido
Pouco importa do calabouço o perímetro
E do chão o estilo
Nem mesmo o meu fastio
Vou morrer! E é isto que importa
Os juízes decretaram a sentença
Resta saber qual

Escorrego e caio
Minhas mãos tocam um poço
E a sorte presenteia-me de não ser nele lançado
Sorte?! Morrerei, pois, lentamente – de fome

Acordo e já nem sei medir o tempo
À esquerda um púcaro d’água e um pedaço de carne
Devoro-o e a dormir volto

Atado pelos braços acordo
Com a impressão de ser vigiado
Liberto da armadilha primeira, preparam-me a derradeira

Minhas costas apoiadas no chão
Meu rosto voltado para cima
No alto uma coisa que balança
Brilhando conforme dança
Se achega descendo
Digo ‘oi’ ao que vejo:
A lamina no pêndulo
Da esquerda à direita, da direita à esquerda
Pega velocidade descendo

A morte chega rápida ou lenta?
Amo-a em pensamento!
– Inquisidores, acabem já com meu tormento!

Oscilo entre escapar e sucumbir
E se a lamina a corrente desatar?
Não terei tempo de esquivar
A paz me invade na pausa do pensar

Perto demais está agora
Ratos sobem do poço
No meu peito se amontoam
Alguns roem as correntes

O pêndulo sobe de repente
Puxado por uma força estranha

Salvo?! As paredes encolhendo
Empurram-me poço adentro
Sem ter mais onde pisar
Fico na ponta dos pés

Um som de trombetas e um rugido poderoso
Uma mão agarra a minha, quando desfalecido quase caía
A inquisição da consciência sucumbia...
                                                                                                                                          (Para E. A. Poe)



SOLILÓQUIO

No saguão do palácio, dois vigias
Noite passada viram sombra minha
Consultaram entre si contar-me o ocorrido
Convidando-me à vigília

Lá estaria eu – noite seguida
Quando meu fantasma surgiria
Dizendo sufocar-me para ter vida

Árvores entre meus dias
Junto ao poço em que bebia
Água ou vinho? Dependia

Vivo morria, morto vivia

Meu fantasma vinha e ia
Sua voz rouca feito a minha
Sua face franzida
Olhos lembrando-me jazidas
E um céu que sobre nós se abria

Cantava-me poesias
Da dor com que escrevia
Do gozo com que as lia
Junto ao poço onde alguém se enforcara
Na corda que ao balde servia

Salvo por um amigo que mais tarde
Me vigiaria
Mas o fundo do poço
Inda refletia a face de alguém
Lancei-me nele,
O solilóquio terminou
Quando morria...



MORANGOS SILVESTRES

Lembranças da infância acarinham minha face
Envelhecida por não saber o que mais arde
Se a culpa ou a morte
Quisera morrer
Esquecer minha sorte
O amor não correspondido
E a solidão que nele irrompe
Mais uma vez, a meia-noite
Canta o dia seguinte
Os ponteiros do relógio
E o cuco nele retine
Culpa-morte, culpa-morte
Não socorri a minha esposa
Ausentei-me de meu filho
Relações de que servem,
Senão pra que critiquem?
Por isso isolei-me
Consola-me o menino
Correndo entre
Morangos silvestres...
                                                                                                                          
                                                                           (Para Ingmar Bergmann)


MALDITO

Andarilho
De trapos vestido
De uma esquina à outra
Vivendo de lixo
Foi assim que conheci o vício
Desde então me perdi no meu mundo
Pois deste estava farto
Vi guerras por ideais
Pessoas no que elas têm de bom – o mal
Estava eu na órbita geral
Clamando salvação
Ninguém atendeu
O riso mascarava minha dor
No contrair da face, a máscara rachou
A moral então me olhou
De maldito me acusou
Maldita ela! Que nunca perguntou
Se de ser maldito alguém



A NOIVA

Meus versos despiam-na
Vestidos grossos e negros, aos poucos
Revelavam-lhe as coxas
Torneadas por pincel de artista
Ao chegar à cintura
Um convite

Logo mais, as torres
Minhas mãos apalpavam
Nelas a riqueza
Me fora dada
Os braços nos seus contornos
Sutis e frágeis

Beijei dela os lábios
Tirando-lhe a grinalda
Copulamos numa rosa
Eu e a Amargura



CACHIMBO DE MELANCOLIA

Sentado na Rua do Capital
O velho toma o tabaco
E após limpar o cachimbo
Nele a coloca

A tabacaria não vende tabaco como este
Este, ele importou do coração
Com aroma de toda sua dor
E da social opressão

Na mocidade doce era a paixão
Mas esta acabou, quando o din-din acabou
E a namorada deu o fora
De bolsos furados
Só o cachimbo restou

Fuma e bafora, fuma e bafora
Na Rua do Capital

Fuma e bafora, fuma e bafora
A melancolia do eu

Fuma e bafora, seus ideais se vão no ar

Fuma e bafora, fuma e bafora
Anarquia não mais

Consumido o fumo
O velho se vai...



ESCOMBROS

Pela dor da perda de quem mais amava
Tão perto tão longe, se foi sem palavra
Sem causa, sem guerra, sem fé

Na ironia dos opostos
Não há solidão pra alguém como eu
Debaixo dos escombros

E a egoísta querendo ser achada
Ó tire o véu, minha amada
Identidade



O ASTROLÁBIO DE DEUS

Anjos cantaram num coração amargo
O canto do amor esconde mil segredos
Nele ouvem-se clarinetes e a voz das águas
Eu era como o que do fundo do abismo saía
Deixando o ódio e a lascívia
Rumo ao Ágape e às causas perdidas
E a maior delas: os que estavam ao meu lado
No abismo, e eu não via

O amor é o astrolábio de Deus
Confiados nele os navegantes se lançam nos mares
E o leviatã se acalma
A segurança mora com os famintos
Sabendo que o pão será servido (mesmo se não for de trigo)
Invejosos se envergonham de nem tudo terem tido
A riqueza é dada ao que ama, de graça
Fonte a jorrar do Céu

Não preciso subir em escadas
Ou em prédios para bebê-la,
Basta olhar ao lado
E, se avistar alguém digno de amor, ame-o
Mas quem não é digno de amor?
Os estupradores, as prostitutas, os assassinos são os mais dignos de
amor
E aquele que lhes nega o amor
É o mais indigno de amor

Ó Amor
Qual é a tua essência?
És como a pomba-rola
Indo e vindo como quer
A história nos conta teu percurso
Pelas mãos dos homens

E nos lábios dos poetas
Tuas vozes
Jesus?! Um subversivo em teu nome
Quebrou os grilhões do legalismo
E as gaiolas dos religiosos
Voemos feito pombas
Voemos como anjos
Se anjos existem ou não...
Mas algo canta no mundo
Quem tem ouvidos ouvirá

Mas olhe!
Nada é prometido
A recompensa do amor
É o próprio amor
Quem o dá o aumenta em si mesmo
É diferente de tudo o que acaba
E os anjos cantaram
Até que eu dormisse...
                                                                      (Para minha mãe)




PELA Fé

Monte Morija
Lembra?
Pai da fé
Voz de Deus
Vá imolar, diz Javé
Jumento ao pé do monte
Abraão e Isaque sobem
De encontro à sorte

Semente bendita,
Sentido da vida.
Diante da morte,
A morte em vida.
Não me aceitarão em suas razões,
Nem a ti nos corações,
Que será de mim?!
Que dirão de nós?!

Razão deixada
Fé e esperança
Seguem jornada

E o cordeiro?
Deus proverá
Fiel promessa
O suscitará

Altar e lenha
Isaque a oferta
Na mão a senha
Eis-me aqui, teu servo,
No monte da sagração
Isaque minha vida

Javé ar que respiro
No monte Morija
Meu ultimo suspiro

Não estenderás a mão sobre o rapaz!
Pela semente o fruto
Pela morte a vida
Meu unigênito, sacrifício às tuas gerações
Benditas em ti, todas as nações

Abraão e Isaque descem
Júbilo e júbilo
No Céu e na Terra
Paz e paz
             
      (Para meu pai e para S. A. Kierkegaard)




O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO

Ó pequeno Holden,
Você nasceu numa família classe média estadunidense
E quando a juventude lhe assaltou, achou tudo tão hipócrita
Ao bater a porta da casa, ela lhe ruiu pelas costas

Ei Holden,
Você já se sentiu como a bola arremessada no campo de centeio?

Ó pequeno Holden,
O colégio era feio aos seus olhos
E ainda que sem conceitos, a perversão estética o assaltou,
O quarto dividido entre colegas tinha farpas invisíveis

Ei Holden,
Você já se sentiu como a bola arremessada no campo de centeio?

Ó pequeno Holden,
Você não foi um bom aluno, não é?
Mas o professor Antolini foi solicito em ajudá-lo
Você não foi um bom filho não é?...

Ei Holden,
Você já se sentiu como a bola arremessada no campo de centeio?

Ó pequeno Holden,
Tudo lhe causava a mais pura revolta,
Exceto sua irmãzinha Phoebe
Ingênua, não corrompida e sua redentora

Ei Holden,
O que acontece se alguém agarra alguém atravessando o campo de
centeio?
                                                                                    
(Para J. D. Salinger)



DO QUE A ALMA TEM FOME?

Uma velhinha coberta com um manto negro
De foice e remo nas mãos
Num barquinho viajante

Ei José, não sabes o dia nem a hora
Estarás pronto?

Disse tão baixo que não pude ouvir,
Mas os ventos trouxeram o som aos meus ouvidos

Estava na areia do mar
Descalço e correndo
Do Sol, do Sol...

O Sol há muito havia queimado minha pele
Tirando as escamas
E queimava meus pés, queimando primeiro a areia

A multidão em roupa de banho
Alguns frades, alguns judeus
E as nuvens brincando de dançar e mudar de forma

Vi a própria face de Deus
E antes que a velhinha sussurrasse de novo se eu estava pronto
Comprei um Açaí

E pensei: Do que a alma tem fome?
                                                                                                    (Para meu pai)



LEVANTEM BEM ALTO A CUMEEIRA

As bondosas árvores abrem
Caminho aos carpinteiros

Levantem bem alto a cumeeira

A cidade se constrói
Casas, prédios, outdoors

O lojista vende pílulas do amor
E você as compra?
Os ais sobem ao décimo segundo andar
Mas você os ouve?

Levantem bem alto a cumeeira

A cumeeira protege um rosto frágil de outro rosto frágil
Os tijolos pintados fazem esquecer como foram postos
E o coração achatado, vai
Ta-qui-car-di-an-do

Levantem bem alto a cumeeira
Uma mãe que deu luz a um filho
Nina-o com sinfônicos tiros vindos da janela
Indo buscar comida na quitanda
Por julgar o menor dos males deixá-lo órfão

Levantem bem alto a cumeeira

As bondosas árvores, penso eu
Deviam ter lutado
Mas a cumeeira fez calar qualquer voz
Hoje, os cinzas se misturam de concreto e pulmão

Ei, amigo, cole os seus nos meus lábios
Eu lhe ajudo e você me ajuda...

Levantem bem alto a cumeeira

Diz em rede nacional... o prefeito
                                                                                   (Para J. D. Salinger)



O FANTASMA PÓS-MODERNO

Periferia, a céu aberto
Um lençol branco invade os grandes centros
Cobrindo-os em seus braços
O fantasma pós-moderno
Entre semáforos pedestres e motoristas cegos
Nos shoppings dondocas e seus desejos
A infância vê o Grande Educador
E a experiência revive

Vizinhos isolam-se em grades pontiagudas
E nas casas os cômodos tem portas
Longe dos que estão perto, perto dos que estão longe
Internet e amor líquido
A embriaguez procura a razão

Se teu amor foi pequeno meu ciúme rasga
E/u

O orgasmo passa
Leite, pão, gente
Bem-sucedidos os que trocam de artigo rápido

Tudo é descartável
This is America, guy
Diria o mexicano.
Lixo humano acumulado
Tentativas locais de sanar problemas globais
Traders investem o dinheiro alheio
Para receber um salário.

E eis teu primogênito
O Fundamentalismo
Sem inseguranças, Ismael seja bendito!

Nem ocidente nem oriente
Perdemos a autenticidade
Leve-nos vento norte
Se o sul não vier antes
De trem.

E só então, no poço dos desesperançados
Bebi a esperança a goles fartos...
                                                                    (Para Walt Whitman e para o Marlão)



OS BÊBADOS

Ó amigo, viste a rosa no jardim?
Ela nasceu há pouco e já esta grandinha
Qual coração murchará em breve
Pelo frio, chuva ou só o tempo

Celebremos a rosa, o mar e o vinho
Para que, vindo o Creador
A ceifar-nos desta terra
Estejamos já bêbados
                                                                              (Para Omar Kayham)



O JUGO DA IMAGINAÇÃO

–Ei garota, você entra me acusando
Mas não fui eu...

Saiba que o homem imagina tantas coisas
E se sujeita ao que imaginou

O homem, com medo de tudo, inventou os deuses
Javé tinha um código moral, os demais eram bem mais promíscuos
Isso é o de menos! O homem se sujeita ao que imaginou

E brigando por mulheres, inventou o parentesco
Ei, vem cá... não se preocupe! ...
Os defeitos genéticos só vêm após a quarta geração
E o homem se sujeita ao que imaginou

Mais pra frente, os clãs inventaram a figura dum rei
Ó, a monarquia é a subversão do poder
Não se preocupe! O homem se sujeita ao que imaginou

E você diz que me ama e eu não correspondo
E me acusa de tantas outras coisas
Não se preocupe! Você se sujeitou à imagem que de mim imaginou

Saiba que o homem imagina tantas coisas
E se sujeita ao que imaginou...



UIVO DOS ARRANHA-CÉUS

Eu ouço um uivo, mulher
É Deus sussurrando dos arranha-céus
Ele me confessou um segredo:
Quer mais bosques e montanhas aqui

Pego minha enxada como em todas as manhãs
E vou capinar
Mas está na hora de mudar a direção
Pois estou ficando velho

O teu ventre já está pronto?
Porque a arma será engatilhada quando você disser

Partiremos amanhã ao pôr do sol
E antes de dar adeus eu quero lhe dizer:

A agência Santander não me esperava e eu entrei
Meu peito foi perfurado milhares de vezes, mulher
E o amor pulou de alegria quando meu último suspiro foi você

Eu ouço um uivo, mulher,
Sou eu suspirando dos arranha-céus
Vou lhe confessar um segredo:
Quero mais bosques e montanhas aqui

Amanhã você fará as mesmas coisas de sempre
Mas está na hora de mudar a direção
Pois todos ficamos velhos

O teu ventre já está pronto?
Porque a arma será engatilhada quando você disser



ROMEU E JULIETA

Em meio às guerras cotidianas
E por dentro dos galpões do submundo
Os saxofones gritam: Um coração!!

Os saxofones revelam um coração humano
Um jazzista, um velho marujo, nas naus da vida, nos subúrbios de si mesmo

Um músico compõe belas sinfonias numa clave meio torta
Shakespeare inventa o amor romântico com Romeu e Julieta
E Deus, que é o mais belo sonho do coração humano
Não resiste nunca à Sua mais bela fraqueza
De amar qualquer criatura

Uma formiga diz à outra: Eia! Façamos aqui um castelo
E logo, iniciam a aventura

Um irmão diz a seu irmão mais novo:
Eis-nos! Nunca nos apartaremos
Mas a vida surpreende com imprevistos
Um vai para um lado, outro simplesmente vai... ao longe

Um homem constrói algo embaixo do céu pra que Deus abençoe
Outro constrói algo acima do monte pra que os homens vejam
Quem é mais bem-aventurado? – argúi aquele que ainda não viu...

A equação da vida é ruim de calcular
Nem deus de todo a previu
As mãos humanas articulam números que não foram colocados
E por isso chamam os poetas de aventura
Ao que outros chamam pelo vulgo, vida

Um garoto pobre esmola um prato de arroz, e o come
Um homem da alta classe paga pelo mais belo bocado de bunda madura

E à loira que esmolada se vendeu, vai comprar novas calcinhas
Pra se vender próximo ao por do Sol

O Sol sorri a todos
Mas um é o Sol dos miseráveis,
Um o Sol do rico,
Um o Sol das prostitutas e ó...
Ó...o Sol dos comerciantes?! É trocado pela lua...
Os comerciantes, então, fazem vir ao firmamento
O que o Criador lá pôs desde o princípio
E o firmamento é estabelecido com Amor

E o amor sorri a todos
Mas um é o amor daqueles que viajam na BR 66,
Outro é o amor do professor pela garçonete,
Outro o da madame pelo seu cãozinho,
Outro ainda, é o Amor que os raios do Sol lança
Sobre todos os habitantes do mundo
O Amor ama o saxofonista em meio a notas desafinadas
O Amor, ó, é o próprio desafino
E é por causa do amor que o sol se enche de esperança
Ao nascer todas as manhãs,
Quando o carpinteiro afia sua faca,
Quando a cidade vazia se balburdia,
Quando os licores estarão para os bêbados
Assim como estes estão para sua própria sina

E a sina? Ó, amada desconhecida
Desconhecida do amor cortês, do amor romântico
Romeu e Julieta, impedidos pelo Amor
Entoam a doçura... da espera...



O LAPIDADOR E A PEDRA

A carga por detrás da caçamba balançava na estrada da vida
O coração do caminhoneiro balançava na estrada da vida
Um cantor decadente tomava o último gole de whisky
Enquanto a viúva cachimbava na varanda escura

A cabeça de um? Balançava como gangorra
A outra? Balançava como uma rede abençoada

O coração de um menino é só uma pedra bruta
Que deixa qualquer mão se aproximar
Mas pra muitos o grande lapidador é a própria estrada

Então alguém se sente como uma pedra a rolar
Até que o brilho apareça ou se despedace

A garota admirou-se dos próprios seios a crescer
Enquanto a mãe lhe dava conselhos sobre o sangue que desce

O padre falava muito sobre o sangue que perdoa os erros dos homens
E alguém lá no confessionário, esperou muito pelo amor

A garota se apaixona pelo moço de cabelos cacheados
A carga da vida não é tão pesada quando dividida
Nem a alegria tão leve se solitária

Os cachos escondem os medos
E o Sol traz sempre a boa nova:
Véu e grinalda e um tapete abençoado
Paz aos homens de boa vontade
Na terra e no céu

Uma casa alugada em algum canto do interior
Um filhinho no desmame
Mas a notícia do mais tarde
De rosto no volante, morrem todos os sonhos num caminhão batido

O choro vai passar, é só uma noite
A alegria, os anjos trarão nos alforjes o consolo

Muitos dizem muitas coisas
Enquanto alguém se sente como uma pedra a rolar
Até que o brilho apareça ou se despedace

Mas para muitos o grande lapidador é a própria estrada

E lá no confessionário, alguém esperou muito pelo amor...



ENGRENAGENS DO CAPITAL

Eis agora amigo
Eu e você, vendo o girar desta engrenagem
À espera do próximo corpo

Charles Chaplin foi mais sortudo ao apertar as malditas porcas
Num filme romântico

As engrenagens não são nada românticas
Elas nos enfiam por dentro
Triturando nossos sonhos

O mundo é uma máquina
Eu ouvi de um burguês
Certa vez

Eis agora amigo
Eu e você, vendo o girar desta engrenagem
À espera do próximo corpo

Não somos só nós a ser triturados
São os bichinhos, o ar e a íris da santa Maria

Eis agora amigo
Os ecologistas parecem apertar a última porca
Querendo reverter a engrenagem, dizem eles:
O mundo é um organismo vivo

Talvez paremos a engrenagem com um chute
Ou um tiro
Talvez eu atire na sua cabeça ou na minha
Mas amigo,
O carregador de balas não girará como outra engrenagem?



MANHÃ SILVESTRE, CADÊ O AMOR CELESTE

Manhã silvestre, cadê o amor celeste?
O pastorzinho acordou seu rebanho
E quando o vi, perto dos vales, o saudei
E ele me saudou de novo, sorrindo

Seu rebanho caminhava para os montes
Onde, me dizia, podiam tocar o Sol nascente
As ovelhas, uma por uma, bebiam da água do rio
O qual se doava, para simples nutrição

E, quando a lua chegar, já estaremos bem distante
Do balburdio de qualquer coisa ruim
Me ajoelho a beber da água viva e a subir aos montes também
Dize-me pastorzinho, o que os leva para lá?

Ele docilmente rezou uma canção:
O rebanho sobe com um pastor errante
Antes, passam pelos três ditosos vales
A fé, a esperança e o amor

E o pastorzinho no seu coração se pergunta:
Manhã silvestre, cadê o amor celeste?
A água os nutriu pela manhã, o sol ao meio-dia e à noite...
Um silêncio apofático                                                    
     
               
(Para o monge anônimo do século XIV autor da Nuvem do Não-Saber)



A PAGANIZAÇÃO DE SÃO JOÃO BATISTA

Nos fechados madrigais que a Vida aperta
Eu a saúdo, apesar do levante duro
Sinto-a como o dia a crepuscular
Desde o arrebol até a escuridão

E grito:
Caminharei por Ti como São João
Apontando a alegria vindoura
De tudo que é efêmero

Beberei o vinho, na ceia do Cristo
Dançarei, no caos do Baco
                                                                              (Para Leonardo Da Vinci)



OS TRÊS PILARES

No âmago do homem é proclamado:
O que os olhos vêem é o dado
Mas o que se enxerga é vedado
O belo

Gestos ínfimos, língua dos mudos
A arte expressa e tira das ruas
Uma eterna mendiga
A justiça

Tua parte comigo, e parte contigo,
Em parte... Não acho pra ela abrigo
Guia-nos alegre, feito vinho
A verdade

Sustêm o tabernáculo
Protegem a alma
De todos e quaisquer males
Da vida são os três pilares
                                                                          (Para o meu amigo, Gouvêa)




BARCA MELANCÓLICA

A vida é uma nau a balançar
Vento norte, tempestade
Ó deus dos ateus, livrai-nos da morte!
Leviatã que nos vem tarde
A bússola rachou no chão, como coração de um jovem
E o mar vai e vem, violentamente

O marinheiro mais experiente, diante, é só um jovem
Velas abaixar, mãos ao leme, reza braba e esperar
Doenças, ratos, medo, valentia
E o mar que não quer calar

Do norte, o sopro de vida, do sul, o sopro de morte
No faroeste as armas faziam ‘bum’ (lembrei-me agora)
Melhor o sangue a jorrar do que o pulmão a inchar
Mas todos querem a morte calma

A nau nunca sabe onde aportar
A bússola da razão quebrou-se no chão
No chão a arte, a fé, a filosofia, a religião
A ciência. É do mundo mera representação
Vi a morte face-a-face e compreendi:
Não há onde se apegar

Os marujos lançaram-se no mar
Cada qual na tentativa de salvar-se
Não se terão perdido antes mesmo do ocorrido?
Talvez sim, talvez não
Cada qual deveria entender do seu viver
Muitos vivem pra comer e beber

Quanto a mim, olhei para o céu
De nuvens negras a chorar pelos aflitos
E chorando não notava, que os afligia
Às vezes o choro mais oprime que consola
E a nau? Se inclinava...

Seu bico beijou o oceano
E foi indo, como no sexo
Ele entra e as ondas gemem
Pra dar vida é preciso morrer primeiro
Despojei-me das honras de outrora
Aceitando a sorte
Meu corpo fôra enfim lançado ao mar
Em espírito fiz uma oração:
Ó deus, ainda que eu morra, faz viver o amor

Nada mais vi
Nem os companheiros que tentavam salvar-se, nem as ondas do mar
Pela garganta as águas salgadas e o pulmão a inchar
Não foi bem a morte calma

A vida é uma nau
Sua viagem, longa ou curta
Não se sabe onde aportar
                                                                                   (Para Hieronymus Bosch)




DOM QUIXOTE

Perto do riacho te desejei nua, ó bela Dulcinéia
E corri a léguas ao ouvir do cavalo os galopes
Era o mais temível cavaleiro andante

Chegou antes que zarpasse
Salve Dom Quixote! – eu disse

Mijando nas calças e vendo o cavaleiro de tristonha face

Salve Dom Quixote! Que na peleja da vida
Quero só que meu pau inda levante
Pra depois fazer as águas rolarem e assim,
Empurrar o barco à frente
Ó, ó, Dulcinéia. Mas isto eu não lhe disse

Enquanto falava-lhe, via-o a sonhar com cara de tonto
E seu fiel escudeiro a pegar do chão espigas

Quando uma cabeça está a voar
A outra tem de fincar-se no chão
Mas com duas cabeças de tão dispares, eu não sei
Com qual hei de gozar?

Salve Dom Quixote! Quando das alturas pousar
O velho fidalgo a armadura despirá
No caixão onde a morte a todos beija
Despimos nossos papeis aqui na Terra
Voltamos a ser pó ou argila
E a ter os culhões entornados à Lua

A Lua é a Terra dos sonhos
Onde está a cavalaria andante
E a bela Dulcinéia
Só desejei tornar à meninice, por ser ela como queijo

E a mordo como a bunda mais cretina
Percebendo, supetão,
Que eu não tenho só esta cabeça
                                                                                    (Para Miguel de Cervantes Saavedra)




EDWARD MÃOS DE TESOURA

Edward, onde foi teu inventor?
O único que poderia te dar mãos para dos humanos se achegar
No alto da montanha em teu castelo
Poda a vegetação com tuas tesouras
A dor dá vida a belas formas
Um céu triste as realça
No jardim da solidão

Pobre Edward. Pobre Edward!

Mas uma vendedora acidentalmente te descobre
Ao ajudar-te, outro mundo tu descobres
Num mundo onde só te querem
Para revolucionários cortes de cabelo
És assombro pra uns, compaixão pra outros
Vitima da inocência, usado por outros

Pobre Edward. Pobre Edward!

Perseguido, incompreendido, usado
Volta fugindo a seu castelo
Ao teu encontro, a que por ti apaixonou-se
E o namorado ciumento
De armas em punho
Morre caindo de uma ogiva

Pobre Edward. Pobre Edward!

Beijou os lábios da que pra sempre partiria
Pois ao mundo dos humanos pertencia

Pobre Edward. Pobre Edward!

Condenado eternamente
Pela obra incompleta
Só, com tesouras
A esculpir, lindas formas da tristeza...
                                                              

(Para Tim Burton e para Alphonsus de Guimaraens)



NÁUSEA

Enfermo no leito
Uma ou duas doses
A dor some
E volta, com o teu beijo

A existência? Um pesadelo
Agitando minha face no espelho
Te vejo
Condenada a agir

Deixando o resto ao Deus dará
Impossível prever como será
Do relógio o despertar
O pesadelo a ressoar

E nas mãos o respingar
Tremulo indago
O que virá?

Sem resposta vomito
A náusea que desde a noite sinto
De existir e não poder dizer:
Minto!



JOANA DARK

Num feudo se via
Veludo branco em um céu cinza
Ovelhas guiadas por uma menina
De nome Joana
Analfabeta, de pobre família
Na cidade de Orleans
Sob o jugo da Inglaterra

São Miguel
Catarina e Margarida, as santas
Lhe ordenaram
Comandar o exército
Libertando o povo
Na guerra dos cem anos

Marcha
Contra o duque de Borgonha
E seus ingleses
Coroado foi o delfim, Carlos VII
Rei da França

Mas eis que Dark é capturada
Pelos borguinhões e entregue aos ingleses
Pelos mesmos, dita feiticeira
E o tribunal eclesiástico a condenou
À fogueira

A praça de Ruão
Incendiara
Mais com os gritos da santa
Que com as próprias chamas
A santa, morta, vivia mais ainda
Os franceses deram cabo à sua causa
A tomada de Bordéus pôs termo ao fim da guerra

O feudalismo se transformava
Feito do Estado Moderno à semelhança



MONTANHA DO NORTE

Ei, amigo, lembra quando éramos só garotos
Desejando apenas subir a montanha do norte?
Abrimos pela primeira vez nossos alforjes
Você possuía a raiva dos anjos caídos
E eu, um ímpeto violento para correr
Preparamos o estilingue e tentamos
Mirar bem na testa de Deus

Seguimos depois fugindo
Pois havíamos ouvido no sermão de domingo:
O Senhor é um fogo devorador
Ele não se deixa escarnecer!
Roubamos-Lhe o fogo sagrado e arrumamos galhos secos
Acendemos pela primeira vez o amor
Que agora queimava em nossos peitos

Ei, amigo, lembra quando chegamos à puberdade,
Desejando apenas continuar a subir a montanha do norte?

Abrimos pela segunda vez nossos alforjes
Ver se havia algo com que manter o fogo aceso
Vimos duas garotas numa rua suja
Que nos deram a conhecer muitos feitiços
E descobrimos que não se barganha o que se dá de graça

Ei amigo, agora que somos adultos,
Que esperamos aqui, nesta montanha?
Temos duas famílias que nos fazem mais feliz que o Divino
Lá em baixo, podemos rever a trajetória
Dos que se rebelam contra Deus
Roubando-Lhe o Seu amor

Foi o que Adão fez, e depois Jesus
Deus quer mesmo que sejamos autônomos
Mas finge não o querer
Feito uma mulher na hora do cortejo

Ei amigo, um dia, você sabe, seremos velhos
E o que desejaremos mais?
Estaremos ante o altar da morte
E o silêncio será nosso único conselheiro
Faremos as pazes com o universo
Apesar da luta penosa que travamos para viver
Os olhos fechar-se-ão satisfeitos e gratos

Ei, amigo, um dia, quem sabe, nos veremos novamente
Na montanha onde os aflitos se rebelam
E onde Deus não vê saída, senão amá-los



A INOCÊNCIA VIAJOU DE TREM

A pequena Doroti chorava o mundo que partia:
A inocência viajou de trem, pegou o primeiro vagão...

E viajando, descobriu um mundo para além do quarto
Pelas janelas, cumprimentava os esquecidos
Mendigos de pele ressecada pelo Sol

A pequena Doroti pensou:
O Sol devia ser bom pra todos
Mas a inocência...
A inocência viajou de trem, pegou o primeiro vagão...

Mulheres seminuas entrevistando caminhões
E de quando em quando, entrando num deles

Velhos fumando seus velhos cachimbos nas ruas sujas de algum gueto
E a fumaça não tinha sabor algum
O fumo apodrecia os dentes na boca
E todo o chocolate se foi
Como incenso às narinas de deus

Doroti se perguntou:
Se deus é bom e criador do universo, de onde, tanto mal?

Doroti, ó, pequena Doroti
Esta pergunta nem os grandes teólogos conseguiram responder

Então, Doroti chorou
Pois ao descer do trem, não viu mais sua melhor amiga:
A inocência se perdeu... pegou o primeiro vagão...




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* CHADAN, José. Barca Melancólica. São Paulo: Fonte Editorial, 2011.

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