Poesias Selecionadas
do livro Barca Melancólica
de José Chadan
do livro Barca Melancólica
de José Chadan
O VINHO
O vinho acabou
E nele a esperança
Entre vida e morte, sou eu a
semelhança?
De mais esta dança
Que não sei se começa quando
descansa
Se cambaleia ou se dança
No cálice da dúvida, uma
certeza
O vinho acabou
A RODA
Pelo sofrimento a busca do
sentido
Vida e morte se revezam e no
giro
Das mãos a razão foge
Eterno esquecimento seria
alívio,
Pior é amargor sem sentido
Na espera que malogra,
Justos e injustos beiram a
negação
Mas detrás da roda e nela,
A mais bela conversão:
O sentido mais sublime e não
menos absurdo
De encontrar o amor sem restrição
DESERTO
Flecha atirada balbucia no
vento
Nos muros da cidade, o pacto
perfeito
Selado num beijo
Conjuras-me que a guerra é
ganha?
No teu arco ó estranha,
perpasso
Tuas profundezas queimam a
seta
Que na fenda me rende
Sarcástica não mata, geme
Com sede
Refresco a língua na taça do
teu ventre
Nos dedos unguento
E a ingrata parte
Na boca? O gosto do selo
INQUISIÇÃO
Lançado no calabouço, o
esquadrinho
Centímetro a centímetro
Não grande, seu chão esguio
De pedra e paredes
Dava importância agora a
coisas sem sentido
Pouco importa do calabouço o
perímetro
E do chão o estilo
Nem mesmo o meu fastio
Vou morrer! E é isto que
importa
Os juízes decretaram a
sentença
Resta saber qual
Escorrego e caio
Minhas mãos tocam um poço
E a sorte presenteia-me de
não ser nele lançado
Sorte?! Morrerei, pois,
lentamente – de fome
Acordo e já nem sei medir o tempo
À esquerda um púcaro d’água
e um pedaço de carne
Devoro-o e a dormir volto
Atado pelos braços acordo
Com a impressão de ser
vigiado
Liberto da armadilha primeira,
preparam-me a derradeira
Minhas costas apoiadas no
chão
Meu rosto voltado para cima
No alto uma coisa que
balança
Brilhando conforme dança
Se achega descendo
Digo ‘oi’ ao que vejo:
A lamina no pêndulo
Da esquerda à direita, da
direita à esquerda
Pega velocidade descendo
A morte chega rápida ou
lenta?
Amo-a em pensamento!
– Inquisidores, acabem já
com meu tormento!
Oscilo entre escapar e
sucumbir
E se a lamina a corrente
desatar?
Não terei tempo de esquivar
A paz me invade na pausa do
pensar
Perto demais está agora
Ratos sobem do poço
No meu peito se amontoam
Alguns roem as correntes
O pêndulo sobe de repente
Puxado por uma força
estranha
Salvo?! As paredes
encolhendo
Empurram-me poço adentro
Sem ter mais onde pisar
Fico na ponta dos pés
Um som de trombetas e um
rugido poderoso
Uma mão agarra a minha,
quando desfalecido quase caía
A inquisição da consciência
sucumbia...
(Para E. A. Poe)
SOLILÓQUIO
No saguão do palácio, dois
vigias
Noite passada viram sombra
minha
Consultaram entre si
contar-me o ocorrido
Convidando-me à vigília
Lá estaria eu – noite
seguida
Quando meu fantasma surgiria
Dizendo sufocar-me para ter
vida
Árvores entre meus dias
Junto ao poço em que bebia
Água ou vinho? Dependia
Vivo morria, morto vivia
Meu fantasma vinha e ia
Sua voz rouca feito a minha
Sua face franzida
Olhos lembrando-me jazidas
E um céu que sobre nós se
abria
Cantava-me poesias
Da dor com que escrevia
Do gozo com que as lia
Junto ao poço onde alguém se
enforcara
Na corda que ao balde servia
Salvo por um amigo que mais
tarde
Me vigiaria
Mas o fundo do poço
Inda refletia a face de
alguém
Lancei-me nele,
O solilóquio terminou
Quando morria...
MORANGOS SILVESTRES
Lembranças da infância
acarinham minha face
Envelhecida por não saber o
que mais arde
Se a culpa ou a morte
Quisera morrer
Esquecer minha sorte
O amor não correspondido
E a solidão que nele irrompe
Mais uma vez, a meia-noite
Canta o dia seguinte
Os ponteiros do relógio
E o cuco nele retine
Culpa-morte, culpa-morte
Não socorri a minha esposa
Ausentei-me de meu filho
Relações de que servem,
Senão pra que critiquem?
Por isso isolei-me
Consola-me o menino
Correndo entre
Morangos silvestres...
(Para Ingmar Bergmann)
MALDITO
Andarilho
De trapos vestido
De uma esquina à outra
Vivendo de lixo
Foi assim que conheci o
vício
Desde então me perdi no meu
mundo
Pois deste estava farto
Vi guerras por ideais
Pessoas no que elas têm de
bom – o mal
Estava eu na órbita geral
Clamando salvação
Ninguém atendeu
O riso mascarava minha dor
No contrair da face, a
máscara rachou
A moral então me olhou
De maldito me acusou
Maldita ela! Que nunca
perguntou
Se de ser maldito alguém
A NOIVA
Meus versos despiam-na
Vestidos grossos e negros,
aos poucos
Revelavam-lhe as coxas
Torneadas por pincel de
artista
Ao chegar à cintura
Um convite
Logo mais, as torres
Minhas mãos apalpavam
Nelas a riqueza
Me fora dada
Os braços nos seus contornos
Sutis e frágeis
Beijei dela os lábios
Tirando-lhe a grinalda
Copulamos numa rosa
Eu e a Amargura
CACHIMBO DE MELANCOLIA
Sentado na Rua do Capital
O velho toma o tabaco
E após limpar o cachimbo
Nele a coloca
A tabacaria não vende tabaco
como este
Este, ele importou do
coração
Com aroma de toda sua dor
E da social opressão
Na mocidade doce era a
paixão
Mas esta acabou, quando o
din-din acabou
E a namorada deu o fora
De bolsos furados
Só o cachimbo restou
Fuma e bafora, fuma e bafora
Na Rua do Capital
Fuma e bafora, fuma e bafora
A melancolia do eu
Fuma e bafora, seus ideais
se vão no ar
Fuma e bafora, fuma e bafora
Anarquia não mais
Consumido o fumo
O velho se vai...
ESCOMBROS
Pela dor da perda de quem
mais amava
Tão perto tão longe, se foi
sem palavra
Sem causa, sem guerra, sem
fé
Na ironia dos opostos
Não há solidão pra alguém
como eu
Debaixo dos escombros
E a egoísta querendo ser
achada
Ó tire o véu, minha amada
Identidade
O ASTROLÁBIO DE DEUS
Anjos cantaram num coração
amargo
O canto do amor esconde mil
segredos
Nele ouvem-se clarinetes e a
voz das águas
Eu era como o que do fundo
do abismo saía
Deixando o ódio e a lascívia
Rumo ao Ágape e às causas
perdidas
E a maior delas: os que
estavam ao meu lado
No abismo, e eu não via
O amor é o astrolábio de
Deus
Confiados nele os navegantes
se lançam nos mares
E o leviatã se acalma
A segurança mora com os
famintos
Sabendo que o pão será
servido (mesmo se não for de trigo)
Invejosos se envergonham de
nem tudo terem tido
A riqueza é dada ao que ama,
de graça
Fonte a jorrar do Céu
Não preciso subir em escadas
Ou em prédios para bebê-la,
Basta olhar ao lado
E, se avistar alguém digno
de amor, ame-o
Mas quem não é digno de
amor?
Os estupradores, as
prostitutas, os assassinos são os mais dignos de
amor
E aquele que lhes nega o
amor
É o mais indigno de amor
Ó Amor
Qual é a tua essência?
És como a pomba-rola
Indo e vindo como quer
A história nos conta teu
percurso
Pelas mãos dos homens
E nos lábios dos poetas
Tuas vozes
Jesus?! Um subversivo em teu
nome
Quebrou os grilhões do
legalismo
E as gaiolas dos religiosos
Voemos feito pombas
Voemos como anjos
Se anjos existem ou não...
Mas algo canta no mundo
Quem tem ouvidos ouvirá
Mas olhe!
Nada é prometido
A recompensa do amor
É o próprio amor
Quem o dá o aumenta em si
mesmo
É diferente de tudo o que
acaba
E os anjos cantaram
Até que eu dormisse...
(Para minha mãe)
PELA Fé
Monte Morija
Lembra?
Pai da fé
Voz de Deus
Vá imolar, diz Javé
Jumento ao pé do monte
Abraão e Isaque sobem
De encontro à sorte
Semente bendita,
Sentido da vida.
Diante da morte,
A morte em vida.
Não me aceitarão em suas
razões,
Nem a ti nos corações,
Que será de mim?!
Que dirão de nós?!
Razão deixada
Fé e esperança
Seguem jornada
E o cordeiro?
Deus proverá
Fiel promessa
O suscitará
Altar e lenha
Isaque a oferta
Na mão a senha
Eis-me aqui, teu servo,
No monte da sagração
Isaque minha vida
Javé ar que respiro
No monte Morija
Meu ultimo suspiro
Não estenderás a mão sobre o
rapaz!
Pela semente o fruto
Pela morte a vida
Meu unigênito, sacrifício às
tuas gerações
Benditas em ti, todas as
nações
Abraão e Isaque descem
Júbilo e júbilo
No Céu e na Terra
Paz e paz
(Para meu pai e para S. A. Kierkegaard)
O APANHADOR NO CAMPO DE CENTEIO
Ó pequeno Holden,
Você nasceu numa família
classe média estadunidense
E quando a juventude lhe
assaltou, achou tudo tão hipócrita
Ao bater a porta da casa,
ela lhe ruiu pelas costas
Ei Holden,
Você já se sentiu como a
bola arremessada no campo de centeio?
Ó pequeno Holden,
O colégio era feio aos seus
olhos
E ainda que sem conceitos, a
perversão estética o assaltou,
O quarto dividido entre
colegas tinha farpas invisíveis
Ei Holden,
Você já se sentiu como a
bola arremessada no campo de centeio?
Ó pequeno Holden,
Você não foi um bom aluno,
não é?
Mas o professor Antolini foi
solicito em ajudá-lo
Você não foi um bom filho
não é?...
Ei Holden,
Você já se sentiu como a
bola arremessada no campo de centeio?
Ó pequeno Holden,
Tudo lhe causava a mais pura
revolta,
Exceto sua irmãzinha Phoebe
Ingênua, não corrompida e
sua redentora
Ei Holden,
O que acontece se alguém
agarra alguém atravessando o campo de
centeio?
(Para J. D. Salinger)
DO QUE A ALMA TEM FOME?
Uma velhinha coberta com um
manto negro
De foice e remo nas mãos
Num barquinho viajante
Ei José, não sabes o dia nem
a hora
Estarás pronto?
Disse tão baixo que não pude
ouvir,
Mas os ventos trouxeram o
som aos meus ouvidos
Estava na areia do mar
Descalço e correndo
Do Sol, do Sol...
O Sol há muito havia
queimado minha pele
Tirando as escamas
E queimava meus pés,
queimando primeiro a areia
A multidão em roupa de banho
Alguns frades, alguns judeus
E as nuvens brincando de
dançar e mudar de forma
Vi a própria face de Deus
E antes que a velhinha
sussurrasse de novo se eu estava pronto
Comprei um Açaí
E pensei: Do que a alma tem
fome?
(Para meu pai)
LEVANTEM BEM ALTO A CUMEEIRA
As bondosas árvores abrem
Caminho aos carpinteiros
Levantem bem alto a cumeeira
A cidade se constrói
Casas, prédios, outdoors
O lojista vende pílulas do
amor
E você as compra?
Os ais sobem ao décimo
segundo andar
Mas você os ouve?
Levantem bem alto a cumeeira
A cumeeira protege um rosto
frágil de outro rosto frágil
Os tijolos pintados fazem
esquecer como foram postos
E o coração achatado, vai
Ta-qui-car-di-an-do
Levantem bem alto a cumeeira
Uma mãe que deu luz a um
filho
Nina-o com sinfônicos tiros
vindos da janela
Indo buscar comida na
quitanda
Por julgar o menor dos males
deixá-lo órfão
Levantem bem alto a cumeeira
As bondosas árvores, penso
eu
Deviam ter lutado
Mas a cumeeira fez calar
qualquer voz
Hoje, os cinzas se misturam de
concreto e pulmão
Ei, amigo, cole os seus nos
meus lábios
Eu lhe ajudo e você me
ajuda...
Levantem bem alto a cumeeira
Diz em rede nacional... o
prefeito
(Para J. D. Salinger)
O FANTASMA PÓS-MODERNO
Periferia, a céu aberto
Um lençol branco invade os
grandes centros
Cobrindo-os em seus braços
O fantasma pós-moderno
Entre semáforos pedestres e
motoristas cegos
Nos shoppings dondocas e
seus desejos
A infância vê o Grande
Educador
E a experiência revive
Vizinhos isolam-se em grades
pontiagudas
E nas casas os cômodos tem
portas
Longe dos que estão perto,
perto dos que estão longe
Internet e amor líquido
A embriaguez procura a razão
Se teu amor foi pequeno meu
ciúme rasga
E/u
O orgasmo passa
Leite, pão, gente
Bem-sucedidos os que trocam
de artigo rápido
Tudo é descartável
This is America, guy
Diria o mexicano.
Lixo humano acumulado
Tentativas locais de sanar
problemas globais
Traders investem o dinheiro
alheio
Para receber um salário.
E eis teu primogênito
O Fundamentalismo
Sem inseguranças, Ismael
seja bendito!
Nem ocidente nem oriente
Perdemos a autenticidade
Leve-nos vento norte
Se o sul não vier antes
De trem.
E só então, no poço dos
desesperançados
Bebi a esperança a goles
fartos...
(Para Walt Whitman e para o Marlão)
OS BÊBADOS
Ó amigo, viste a rosa no
jardim?
Ela nasceu há pouco e já
esta grandinha
Qual coração murchará em
breve
Pelo frio, chuva ou só o
tempo
Celebremos a rosa, o mar e o
vinho
Para que, vindo o Creador
A ceifar-nos desta terra
Estejamos já bêbados
(Para Omar Kayham)
O JUGO DA IMAGINAÇÃO
–Ei garota, você entra me
acusando
Mas não fui eu...
Saiba que o homem imagina
tantas coisas
E se sujeita ao que imaginou
O homem, com medo de tudo,
inventou os deuses
Javé tinha um código moral,
os demais eram bem mais promíscuos
Isso é o de menos! O homem
se sujeita ao que imaginou
E brigando por mulheres,
inventou o parentesco
Ei, vem cá... não se
preocupe! ...
Os defeitos genéticos só vêm
após a quarta geração
E o homem se sujeita ao que
imaginou
Mais pra frente, os clãs
inventaram a figura dum rei
Ó, a monarquia é a subversão
do poder
Não se preocupe! O homem se
sujeita ao que imaginou
E você diz que me ama e eu
não correspondo
E me acusa de tantas outras
coisas
Não se preocupe! Você se
sujeitou à imagem que de mim imaginou
Saiba que o homem imagina
tantas coisas
E se sujeita ao que imaginou...
UIVO DOS ARRANHA-CÉUS
Eu ouço um uivo, mulher
É Deus sussurrando dos
arranha-céus
Ele me confessou um segredo:
Quer mais bosques e
montanhas aqui
Pego minha enxada como em
todas as manhãs
E vou capinar
Mas está na hora de mudar a
direção
Pois estou ficando velho
O teu ventre já está pronto?
Porque a arma será
engatilhada quando você disser
Partiremos amanhã ao pôr do
sol
E antes de dar adeus eu
quero lhe dizer:
A agência Santander não me
esperava e eu entrei
Meu peito foi perfurado
milhares de vezes, mulher
E o amor pulou de alegria
quando meu último suspiro foi você
Eu ouço um uivo, mulher,
Sou eu suspirando dos
arranha-céus
Vou lhe confessar um
segredo:
Quero mais bosques e
montanhas aqui
Amanhã você fará as mesmas
coisas de sempre
Mas está na hora de mudar a
direção
Pois todos ficamos velhos
O teu ventre já está pronto?
Porque a arma será engatilhada
quando você disser
ROMEU E JULIETA
Em meio às guerras
cotidianas
E por dentro dos galpões do
submundo
Os saxofones gritam: Um
coração!!
Os saxofones revelam um
coração humano
Um jazzista, um velho
marujo, nas naus da vida, nos subúrbios de si mesmo
Um músico compõe belas
sinfonias numa clave meio torta
Shakespeare inventa o amor
romântico com Romeu e Julieta
E Deus, que é o mais belo
sonho do coração humano
Não resiste nunca à Sua mais
bela fraqueza
De amar qualquer criatura
Uma formiga diz à outra:
Eia! Façamos aqui um castelo
E logo, iniciam a aventura
Um irmão diz a seu irmão
mais novo:
Eis-nos! Nunca nos
apartaremos
Mas a vida surpreende com
imprevistos
Um vai para um lado, outro
simplesmente vai... ao longe
Um homem constrói algo
embaixo do céu pra que Deus abençoe
Outro constrói algo acima do
monte pra que os homens vejam
Quem é mais bem-aventurado?
– argúi aquele que ainda não viu...
A equação da vida é ruim de
calcular
Nem deus de todo a previu
As mãos humanas articulam
números que não foram colocados
E por isso chamam os poetas
de aventura
Ao que outros chamam pelo
vulgo, vida
Um garoto pobre esmola um
prato de arroz, e o come
Um homem da alta classe paga
pelo mais belo bocado de bunda madura
E à loira que esmolada se
vendeu, vai comprar novas calcinhas
Pra se vender próximo ao por
do Sol
O Sol sorri a todos
Mas um é o Sol dos
miseráveis,
Um o Sol do rico,
Um o Sol das prostitutas e
ó...
Ó...o Sol dos comerciantes?!
É trocado pela lua...
Os comerciantes, então,
fazem vir ao firmamento
O que o Criador lá pôs desde
o princípio
E o firmamento é
estabelecido com Amor
E o amor sorri a todos
Mas um é o amor daqueles que
viajam na BR 66,
Outro é o amor do professor
pela garçonete,
Outro o da madame pelo seu
cãozinho,
Outro ainda, é o Amor que os
raios do Sol lança
Sobre todos os habitantes do
mundo
O Amor ama o saxofonista em
meio a notas desafinadas
O Amor, ó, é o próprio
desafino
E é por causa do amor que o
sol se enche de esperança
Ao nascer todas as manhãs,
Quando o carpinteiro afia
sua faca,
Quando a cidade vazia se
balburdia,
Quando os licores estarão
para os bêbados
Assim como estes estão para
sua própria sina
E a sina? Ó, amada
desconhecida
Desconhecida do amor cortês,
do amor romântico
Romeu e Julieta, impedidos
pelo Amor
Entoam a doçura... da
espera...
O LAPIDADOR E A PEDRA
A carga por detrás da
caçamba balançava na estrada da vida
O coração do caminhoneiro
balançava na estrada da vida
Um cantor decadente tomava o
último gole de whisky
Enquanto a viúva cachimbava
na varanda escura
A cabeça de um? Balançava
como gangorra
A outra? Balançava como uma
rede abençoada
O coração de um menino é só
uma pedra bruta
Que deixa qualquer mão se
aproximar
Mas pra muitos o grande lapidador
é a própria estrada
Então alguém se sente como
uma pedra a rolar
Até que o brilho apareça ou
se despedace
A garota admirou-se dos
próprios seios a crescer
Enquanto a mãe lhe dava
conselhos sobre o sangue que desce
O padre falava muito sobre o
sangue que perdoa os erros dos homens
E alguém lá no
confessionário, esperou muito pelo amor
A garota se apaixona pelo
moço de cabelos cacheados
A carga da vida não é tão
pesada quando dividida
Nem a alegria tão leve se
solitária
Os cachos escondem os medos
E o Sol traz sempre a boa
nova:
Véu e grinalda e um tapete
abençoado
Paz aos homens de boa
vontade
Na terra e no céu
Uma casa alugada em algum
canto do interior
Um filhinho no desmame
Mas a notícia do mais tarde
De rosto no volante, morrem
todos os sonhos num caminhão batido
O choro vai passar, é só uma
noite
A alegria, os anjos trarão
nos alforjes o consolo
Muitos dizem muitas coisas
Enquanto alguém se sente
como uma pedra a rolar
Até que o brilho apareça ou
se despedace
Mas para muitos o grande
lapidador é a própria estrada
E lá no confessionário, alguém
esperou muito pelo amor...
ENGRENAGENS DO CAPITAL
Eis agora amigo
Eu e você, vendo o girar
desta engrenagem
À espera do próximo corpo
Charles Chaplin foi mais
sortudo ao apertar as malditas porcas
Num filme romântico
As engrenagens não são nada
românticas
Elas nos enfiam por dentro
Triturando nossos sonhos
O mundo é uma máquina
Eu ouvi de um burguês
Certa vez
Eis agora amigo
Eu e você, vendo o girar
desta engrenagem
À espera do próximo corpo
Não somos só nós a ser
triturados
São os bichinhos, o ar e a
íris da santa Maria
Eis agora amigo
Os ecologistas parecem
apertar a última porca
Querendo reverter a
engrenagem, dizem eles:
O mundo é um organismo vivo
Talvez paremos a engrenagem
com um chute
Ou um tiro
Talvez eu atire na sua
cabeça ou na minha
Mas amigo,
O carregador de balas não
girará como outra engrenagem?
MANHÃ SILVESTRE, CADÊ O AMOR CELESTE
Manhã silvestre, cadê o amor
celeste?
O pastorzinho acordou seu
rebanho
E quando o vi, perto dos
vales, o saudei
E ele me saudou de novo,
sorrindo
Seu rebanho caminhava para
os montes
Onde, me dizia, podiam tocar
o Sol nascente
As ovelhas, uma por uma,
bebiam da água do rio
O qual se doava, para
simples nutrição
E, quando a lua chegar, já
estaremos bem distante
Do balburdio de qualquer
coisa ruim
Me ajoelho a beber da água
viva e a subir aos montes também
Dize-me pastorzinho, o que
os leva para lá?
Ele docilmente rezou uma
canção:
O rebanho sobe com um pastor
errante
Antes, passam pelos três
ditosos vales
A fé, a esperança e o amor
E o pastorzinho no seu
coração se pergunta:
Manhã silvestre, cadê o amor
celeste?
A água os nutriu pela manhã,
o sol ao meio-dia e à noite...
Um silêncio apofático
(Para o monge anônimo do
século XIV autor da Nuvem do Não-Saber)
A PAGANIZAÇÃO DE SÃO JOÃO BATISTA
Nos fechados madrigais que a
Vida aperta
Eu a saúdo, apesar do
levante duro
Sinto-a como o dia a
crepuscular
Desde o arrebol até a
escuridão
E grito:
Caminharei por Ti como São
João
Apontando a alegria vindoura
De tudo que é efêmero
Beberei o vinho, na ceia do
Cristo
Dançarei, no caos do Baco
(Para Leonardo Da Vinci)
OS TRÊS PILARES
No âmago do homem é
proclamado:
O que os olhos vêem é o dado
Mas o que se enxerga é
vedado
O belo
Gestos ínfimos, língua dos
mudos
A arte expressa e tira das
ruas
Uma eterna mendiga
A justiça
Tua parte comigo, e parte
contigo,
Em parte... Não acho pra ela
abrigo
Guia-nos alegre, feito vinho
A verdade
Sustêm o tabernáculo
Protegem a alma
De todos e quaisquer males
Da vida são os três pilares
(Para o meu amigo, Gouvêa)
BARCA MELANCÓLICA
A vida é uma nau a balançar
Vento norte, tempestade
Ó deus dos ateus, livrai-nos
da morte!
Leviatã que nos vem tarde
A bússola rachou no chão,
como coração de um jovem
E o mar vai e vem,
violentamente
O marinheiro mais
experiente, diante, é só um jovem
Velas abaixar, mãos ao leme,
reza braba e esperar
Doenças, ratos, medo,
valentia
E o mar que não quer calar
Do norte, o sopro de vida,
do sul, o sopro de morte
No faroeste as armas faziam
‘bum’ (lembrei-me agora)
Melhor o sangue a jorrar do
que o pulmão a inchar
Mas todos querem a morte
calma
A nau nunca sabe onde
aportar
A bússola da razão
quebrou-se no chão
No chão a arte, a fé, a
filosofia, a religião
A ciência. É do mundo mera
representação
Vi a morte face-a-face e
compreendi:
Não há onde se apegar
Os marujos lançaram-se no
mar
Cada qual na tentativa de
salvar-se
Não se terão perdido antes
mesmo do ocorrido?
Talvez sim, talvez não
Cada qual deveria entender
do seu viver
Muitos vivem pra comer e
beber
Quanto a mim, olhei para o
céu
De nuvens negras a chorar
pelos aflitos
E chorando não notava, que
os afligia
Às vezes o choro mais oprime
que consola
E a nau? Se inclinava...
Seu bico beijou o oceano
E foi indo, como no sexo
Ele entra e as ondas gemem
Pra dar vida é preciso
morrer primeiro
Despojei-me das honras de
outrora
Aceitando a sorte
Meu corpo fôra enfim lançado
ao mar
Em espírito fiz uma oração:
Ó deus, ainda que eu morra,
faz viver o amor
Nada mais vi
Nem os companheiros que
tentavam salvar-se, nem as ondas do mar
Pela garganta as águas
salgadas e o pulmão a inchar
Não foi bem a morte calma
A vida é uma nau
Sua viagem, longa ou curta
Não se sabe onde aportar
(Para Hieronymus Bosch)
DOM QUIXOTE
Perto do riacho te desejei
nua, ó bela Dulcinéia
E corri a léguas ao ouvir do
cavalo os galopes
Era o mais temível cavaleiro
andante
Chegou antes que zarpasse
Salve Dom Quixote! – eu
disse
Mijando nas calças e vendo o
cavaleiro de tristonha face
Salve Dom Quixote! Que na
peleja da vida
Quero só que meu pau inda
levante
Pra depois fazer as águas
rolarem e assim,
Empurrar o barco à frente
Ó, ó, Dulcinéia. Mas isto eu
não lhe disse
Enquanto falava-lhe, via-o a
sonhar com cara de tonto
E seu fiel escudeiro a pegar
do chão espigas
Quando uma cabeça está a
voar
A outra tem de fincar-se no
chão
Mas com duas cabeças de tão
dispares, eu não sei
Com qual hei de gozar?
Salve Dom Quixote! Quando
das alturas pousar
O velho fidalgo a armadura
despirá
No caixão onde a morte a
todos beija
Despimos nossos papeis aqui
na Terra
Voltamos a ser pó ou argila
E a ter os culhões
entornados à Lua
A Lua é a Terra dos sonhos
Onde está a cavalaria
andante
E a bela Dulcinéia
Só desejei tornar à
meninice, por ser ela como queijo
E a mordo como a bunda mais
cretina
Percebendo, supetão,
Que eu não tenho só esta
cabeça
(Para Miguel de Cervantes Saavedra)
EDWARD MÃOS DE TESOURA
Edward, onde foi teu
inventor?
O único que poderia te dar
mãos para dos humanos se achegar
No alto da montanha em teu
castelo
Poda a vegetação com tuas
tesouras
A dor dá vida a belas formas
Um céu triste as realça
No jardim da solidão
Pobre Edward. Pobre Edward!
Mas uma vendedora
acidentalmente te descobre
Ao ajudar-te, outro mundo tu
descobres
Num mundo onde só te querem
Para revolucionários cortes
de cabelo
És assombro pra uns,
compaixão pra outros
Vitima da inocência, usado
por outros
Pobre Edward. Pobre Edward!
Perseguido, incompreendido,
usado
Volta fugindo a seu castelo
Ao teu encontro, a que por
ti apaixonou-se
E o namorado ciumento
De armas em punho
Morre caindo de uma ogiva
Pobre Edward. Pobre Edward!
Beijou os lábios da que pra
sempre partiria
Pois ao mundo dos humanos
pertencia
Pobre Edward. Pobre Edward!
Condenado eternamente
Pela obra incompleta
Só, com tesouras
A esculpir, lindas formas da
tristeza...
(Para Tim Burton e para Alphonsus de Guimaraens)
NÁUSEA
Enfermo no leito
Uma ou duas doses
A dor some
E volta, com o teu beijo
A existência? Um pesadelo
Agitando minha face no
espelho
Te vejo
Condenada a agir
Deixando o resto ao Deus
dará
Impossível prever como será
Do relógio o despertar
O pesadelo a ressoar
E nas mãos o respingar
Tremulo indago
O que virá?
Sem resposta vomito
A náusea que desde a noite
sinto
De existir e não poder
dizer:
Minto!
JOANA DARK
Num feudo se via
Veludo branco em um céu cinza
Ovelhas guiadas por uma
menina
De nome Joana
Analfabeta, de pobre família
Na cidade de Orleans
Sob o jugo da Inglaterra
São Miguel
Catarina e Margarida, as
santas
Lhe ordenaram
Comandar o exército
Libertando o povo
Na guerra dos cem anos
Marcha
Contra o duque de Borgonha
E seus ingleses
Coroado foi o delfim, Carlos
VII
Rei da França
Mas eis que Dark é capturada
Pelos borguinhões e entregue
aos ingleses
Pelos mesmos, dita
feiticeira
E o tribunal eclesiástico a
condenou
À fogueira
A praça de Ruão
Incendiara
Mais com os gritos da santa
Que com as próprias chamas
A santa, morta, vivia mais
ainda
Os franceses deram cabo à
sua causa
A tomada de Bordéus pôs
termo ao fim da guerra
O feudalismo se transformava
Feito do Estado Moderno à
semelhança
MONTANHA DO NORTE
Ei, amigo, lembra quando
éramos só garotos
Desejando apenas subir a
montanha do norte?
Abrimos pela primeira vez
nossos alforjes
Você possuía a raiva dos
anjos caídos
E eu, um ímpeto violento
para correr
Preparamos o estilingue e tentamos
Mirar bem na testa de Deus
Seguimos depois fugindo
Pois havíamos ouvido no
sermão de domingo:
O Senhor é um fogo devorador
Ele não se deixa escarnecer!
Roubamos-Lhe o fogo sagrado
e arrumamos galhos secos
Acendemos pela primeira vez
o amor
Que agora queimava em nossos
peitos
Ei, amigo, lembra quando
chegamos à puberdade,
Desejando apenas continuar a
subir a montanha do norte?
Abrimos pela segunda vez
nossos alforjes
Ver se havia algo com que
manter o fogo aceso
Vimos duas garotas numa rua
suja
Que nos deram a conhecer
muitos feitiços
E descobrimos que não se
barganha o que se dá de graça
Ei amigo, agora que somos
adultos,
Que esperamos aqui, nesta
montanha?
Temos duas famílias que nos
fazem mais feliz que o Divino
Lá em baixo, podemos rever a
trajetória
Dos que se rebelam contra
Deus
Roubando-Lhe o Seu amor
Foi o que Adão fez, e depois
Jesus
Deus quer mesmo que sejamos
autônomos
Mas finge não o querer
Feito uma mulher na hora do
cortejo
Ei amigo, um dia, você sabe,
seremos velhos
E o que desejaremos mais?
Estaremos ante o altar da
morte
E o silêncio será nosso
único conselheiro
Faremos as pazes com o
universo
Apesar da luta penosa que
travamos para viver
Os olhos fechar-se-ão
satisfeitos e gratos
Ei, amigo, um dia, quem
sabe, nos veremos novamente
Na montanha onde os aflitos
se rebelam
E onde Deus não vê saída,
senão amá-los
A INOCÊNCIA VIAJOU DE TREM
A pequena Doroti chorava o
mundo que partia:
A inocência viajou de trem,
pegou o primeiro vagão...
E viajando, descobriu um
mundo para além do quarto
Pelas janelas, cumprimentava
os esquecidos
Mendigos de pele ressecada
pelo Sol
A pequena Doroti pensou:
O Sol devia ser bom pra
todos
Mas a inocência...
A inocência viajou de trem,
pegou o primeiro vagão...
Mulheres seminuas
entrevistando caminhões
E de quando em quando,
entrando num deles
Velhos fumando seus velhos
cachimbos nas ruas sujas de algum gueto
E a fumaça não tinha sabor
algum
O fumo apodrecia os dentes
na boca
E todo o chocolate se foi
Como incenso às narinas de
deus
Doroti se perguntou:
Se deus é bom e criador do
universo, de onde, tanto mal?
Doroti, ó, pequena Doroti
Esta pergunta nem os grandes
teólogos conseguiram responder
Então, Doroti chorou
Pois ao descer do trem, não
viu mais sua melhor amiga:
A inocência se perdeu...
pegou o primeiro vagão...
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