domingo, 7 de julho de 2013

ARTIGO II

Moisés 
autor: José de Ribera (1591-1652)

MOISÉS NO MONTE SINAI EM A TRINDADE DE SANTO AGOSTINHO E EM A NUVEM DO NÃO-SABER DE UM ESCRITOR ANÔNIMO DO SÉCULO XIV
José Chadan

RESUMO

Tentarei mostrar as aproximações entre a interpretação que Santo Agostinho em sua obra A Trindade e que o escritor anônimo em A Nuvem do Não-Saber fazem do episódio narrado no livro de êxodo 24, 10-18. Segundo Agostinho, a epifania da nuvem que cobriu Moisés no monte Sinai além de relacionar-se diretamente com outras passagens bíblicas que o autor menciona, manifestaria Deus não em sua plenitude, essência, mas sempre através de uma de suas criaturas. Ao passo que para o escritor anônimo, a nuvem que cobriu Moisés teria mais a ver com um “manifestar-se” de Deus que ocorre sempre por meio de um ocultar-Se, sendo também, um modo de ensinar a vida contemplativa.

Palavras-chave: epifania, Moisés, nuvem, montanha, Deus.

ABSTRACT
I shall try to show the points of congruence between how St Augustine, in his work The Trinity, and the unknown writer, in The Cloud of the Unknowing, would interpret the episode narrated in the book of Exodus 24, 10-18. According to St. Augustine, the epiphany of the cloud that covered Moses on Mount Sinai, in addition to relating directly to other biblical passages which the author mentions, manifested God not in His fullness or essence but through one of His creatures. Meanwhile, to the anonymous writer, the cloud that covered Moses would have more to do with a manifestation of God which would always occur as means of hiding, being also a way to teach about the contemplative life.
Keywords: epiphany, Moses, cloud, mountain, God.

INTRODUÇÃO

Para este trabalho utilizarei como textos basilares a obra A Trindade traduzida pelo Frei A. Belmonte, (como já o mencionei logo acima), a obra A Nuvem do Não-Saber[1], segundo a tradução portuguesa feita por Dom Lino Correia Marques de Miranda Moreira e a versão da Bíblia revista e corrigida por João Ferreira de Almeida[2]. Dividirei o mesmo em duas partes. Na primeira, mostrando a interpretação que Agostinho faz em A Trindade da epifania narrada no livro do Êxodo 24, 10-18 e posteriormente passando para a interpretação feita em A Nuvem, pelo monge cartuxo.

Na obra A Trindade de Santo Agostinho, nos capítulos 14-17 do livro segundo, o autor interpreta o episódio de Moisés no monte Sinai. Não poucas vezes, também relaciona-o com outros textos das Sagradas Escrituras. O mesmo episódio é interpretado pelo escritor anônimo de A Nuvem do Não-Saber nos capítulos 71-73. 

O episódio bíblico se encontra no livro de Êxodo capítulo 24 versículos 12-18 segundo a tradução revista e corrigida por João Ferreira de Almeida[3]. O cartuxo desconhecido apenas o menciona implicitamente, enquanto que segundo a tradução feita por Augustino Belmonte de A Trindade[4] são mencionadas explicitamente algumas passagens do livro do Êxodo.  

Embora no texto de A Nuvem, o cartuxo se detenha especificamente na referida passagem, o mesmo não ocorre em A Trindade de Agostinho, que por vezes extrapola um pouco este limite, já que o autor tem o habito de amalgamar diversas passagens bíblicas ao invés de focar numa só. Relacionando sucessivamente, passagens do Velho Testamento com passagens do Novo Testamento (indo e vindo).

O referido episódio narra a ordem que Deus teria dado a Moisés, para que subisse ao monte Sinai, onde receberia as tábuas da lei. Em chegando ao cume do monte, foi coberto por uma nuvem durante seis dias e, ao sétimo dia, Deus lhe apareceu de dentro dela[5].


MOISÉS NO MONTE SINAI SEGUNDO A TRINDADE: A EPIFANIA QUE “MANIFESTA” DEUS

a.    A Epifania do Monte Sinai e suas relações com Luc. 11,20 e At. 2, 1-4: Uma das pessoas da Trindade que se manifestaria em forma de nuvem, dedo e/ou fogo

Agostinho parece ficar em dúvida acerca de em qual das três pessoas da Santíssima Trindade Deus teria aparecido a Moisés no Monte Sinai.  Ora afirmando de que Deus lhe apareceu na segunda pessoa da Trindade[6]( o Filho), ora de que lhe apareceu na terceira pessoa (o Espírito Santo). Ora ainda, afirma não ser possível dizer com precisão em qual das três pessoas da Trindade Deus apareceu a Moisés.
Agostinho fundamenta a hipótese de Deus ter aparecido a Moisés na terceira pessoa da Santíssima Trindade, à semelhança da narrativa do Êxodo, que afirma de que os dez mandamentos foram escritos nas tábuas de pedra com o “dedo de Deus”. Outrossim, à semelhança do evangelho de Lucas 11,20[7], que afirma de que o Senhor ao ser acusado pelos fariseus de expulsar os demônios por Beelzebú, respondeu-lhes dizendo que os expulsava pelo “dedo de Deus”. Para Agostinho, portanto, a expressão “dedo de Deus” faz referência direta a terceira pessoa da Trindade.

Agostinho também compara a epifania do Êxodo 24 com o episódio de pentecostes, baseando-se na semelhança pela maneira à qual Deus aparece em ambos episódios. No Êxodo, o monte Sinai fumegava e em Atos 2,1-4 Deus aparece aos apóstolos em forma de línguas de fogo[8]. De qualquer maneira, Deus não aparece em sua essência, mas sim, na forma de uma de suas criaturas[9].

b.    A Epifania do Monte Sinai como Prefiguração de Cristo

Indo mais adiante no livro do Êxodo[10], Moisés roga a Deus para que O possa ver e Ele responde que só o poderá ver pelas costas, jamais o Seu rosto (Êx. 33,11-23). Segundo Agostinho, a resposta de Deus ao apelo de Moisés para ver Sua face, prefigura a pessoa de Jesus Cristo. As costas significando a carne e a condição mortal que Cristo humildemente assumiu enquanto Verbo encarnado e a face, Sua condição divina à qual nenhum mortal poderia jamais ver e continuar vivo[11]. Por face de Deus, o autor também compreende a manifestação da Sabedoria de Deus[12].

Devemos amar a Cristo primeiro contemplando Suas costas, Sua carne castigada por nossos pecados, compreendendo deste modo, que Ele nos amou primeiro. Como ensina Agostinho: “Por isso, o mérito de nossa fé é a ressurreição do corpo do Senhor” [13]. Devemos, pois, crer na ressurreição corpórea de Cristo, para junto com Ele, fazermos a passagem deste mundo para o Pai.
Passagem na língua hebraica quer dizer Páscoa[14], e, como é sabido, Jesus comemorou a Páscoa com seus discípulos, distribuindo o pão que simbolizava seu corpo, sua carne (no limite, “suas costas” ou “sua passagem”). Seria preciso então, a um discípulo que quisesse ver a face do Senhor (assim como Moisés o quis), comungar a Páscoa do Senhor, sua passagem para o Pai e o lugar apropriado para tal é a Igreja Católica[15].

O bispo de Hipona menciona diversas passagens bíblicas, porém prender-se a elas dispersaria o assunto, posto que o mesmo o autor não as esquadrinha de maneira rigorosa e detalhada, apenas conjugando-as conforme lhe apraz. Finalmente, o autor diz que, embora as Escrituras mencionem as costas e o rosto do Senhor, tais termos são inapropriados ao se referir a Deus, pois dão margem à confusão, levando-nos a achar que o Verbo e a Sabedoria de Deus têm rosto e costas à semelhança do corpo humano[16]. Toda manifestação da presença do Deus imutável narradas em tais episódios ocorreram, portanto, “não na sua essência, mas de modo figurativo, conforme exigências das circunstancias e tempos” [17].


MOISÉS NO MONTE SINAI SEGUNDO A NUVEM DO NÃO-SABER: A EPIFANIA QUE “ESCONDE” DEUS

a.    Moisés no Monte Sinai: Deus como a nuvem que cobre a vista

Em A Nuvem do Não-Saber o cartuxo trata do mesmo episódio: Êxodo 24[18]. Porém, ao contrário de Agostinho, que pretendia ver neste episódio uma das pessoas da Santíssima Trindade ou a prefiguração de Cristo, relacionando-o com outras passagens bíblicas, o cartuxo se detém apenas e somente no referido episódio. E, ao invés de compreender a epifania como uma manifestação de uma das pessoas da Trindade ou como prefiguração de Cristo, o cartuxo anônimo usa esta epifania para tratar do Não-Ser, do Não-Saber, da ignorância mesma acerca de Deus.

A única referência que o cartuxo anônimo faz para além do livro de Êxodo 24, é a frase de São Dionísio, onde este afirma de que “O conhecimento mais divino de Deus é o que se alcança por meio da ignorância” [19]. E na sequencia, o cartuxo coloca Dionísio mesmo, como sendo a fonte autoritativa para a interpretação não só da referida epifania, mas de toda sua obra:  “(...) quem consultar as obras de Dionísio verificará que ele confirma claramente tudo o que eu digo, do principio ao fim deste tratado” [20].
Enquanto Agostinho pretende mostrar que Moisés ao ser coberto por uma nuvem viu alguma coisa, uma das pessoas da Trindade ou a prefiguração de Cristo, o cartuxo pretende mostrar que Moisés ao ser coberto pela nuvem, não viu nada, só escuridão. Entretanto, este nada, esta escuridão, é Deus mesmo. Deus é então, visto justamente, em não ser visto e é conhecido quando Dele nada se sabe efetivamente[21].

b.   Três degraus da vida Contemplativa: Moisés, Beseleel e Aarão

Outrossim, tratando do mesmo episódio, o cartuxo aborda os tipos de contemplação. Moisés representa aqueles que com muito esforço chegariam à perfeita contemplação[22], em contraposição a Aarão, que representa aqueles que chegam à perfeita contemplação sempre que desejam[23].

Isto porque Moisés precisa esforçar-se para subir ao cimo do monte e trabalhar na nuvem por seis dias, para só então, ver como a arca deveria ser construída. Aarão, ao contrário, mediante estratagemas espirituais e com o auxilio da graça, vê a arca sempre que deseja[24].

O autor menciona também a personagem não menos importante, de Beseleel. Estas três, como representações dos três degraus da vida contemplativa. Ou, como diz o próprio autor:
Moisés, que apesar de escalar a montanha com grande fatiga, só conseguia ver a Arca pouquíssimas vezes, sendo tal visão uma revelação de Deus, quando Ele se dispunha a concedê-la, e não o premio do esforço humano. (...) Beseleel, que não podia ver a Arca senão depois de a construir com seu próprio esforço (...) [e] Aarão, que a tinha à sua guarda, e costumava ver e tocar quando queria, a Arca (...)[25].

Há portanto, segundo o cartuxo desconhecido, uma escala ou degraus na vida contemplativa. No primeiro degrau está Moisés, no segundo Beseleel e no terceiro, Aarão. Como afirma o cartuxo: de que Moisés aprendeu de Deus (na montanha) como é que se devia fazer a Arca; Beseleel a construiu e Aarão a teve disponível no Templo, para ver e tocar quando assim o desejasse[26].


BIBLIOGRAFIA

AGOSTINHO. A Trindade. 2º Ed. São Paulo: Paulus, 1994.
ANÔNIMO DO SÉCULO XIV. A Nuvem do Não-Saber, Trad. D. Lino Correia Marques de Miranda Moreira. Petrópolis: Ed. vozes, 2008.
BEZERRA, Cícero Cunha.Dionísio, Pseudo-Areopagita, Mística e Neoplatonismo. São Paulo: Ed. Paulus, 2009.
BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida, Revista e corrigida. 76 ed. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1993, Novo Testamento.
DANIELOU, Jean. Platonisme et Theologie Mystique. Paris: Ed. Montaigne, 1944.
DIONÍSIO, PSEUDO-AREOPAGITA. Obras Completas. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1996.
GRÉGORIE DE NYSSE. La Vie de Moïse. Trad Jean Danielou, s. j. Paris: Editions du Cerf, 1955.
HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos. São Paulo: Ed Martins Fontes, 2001.
 MERTON, Thomas. A Experiência Interior. Trad. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007.






[1] ANÔNIMO DO SÉCULO XIV. A Nuvem do Não-Saber, Trad. D. Lino Correia Marques de Miranda Moreira. Petrópolis: Ed. vozes, 2008.
Toda vez em que esta obra for mencionada, será utilizada a abreviatura: A Nuvem.
[2] BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida, Revista e corrigida. 76 ed. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1993.
[3] Cf. BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida, Revista e corrigida. 76 ed. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1993, Velho Testamento, p. 82.
[4] Cf. AGOSTINHO. A Trindade. 2º Ed. São Paulo: Paulus, 1994.
Toda vez em que esta obra for mencionada, será usada a abreviatura: A Trindade.
[5] Êx. 24, 10-18.
[6] Cf. A Trindade, livro II, cap. 15, p. 99.
[7]Cf. BÍBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida, Revista e corrigida. 76 ed. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1993, Novo Testamento, p. 84.
[8] Cf. A Trindade, livro II, cap. 15, p. 100.
[9] Cf. A Trindade, livro II, cap. 15, p. 101.
[10] Optei por abordar a sequencia em que Agostinho interpreta a narrativa do Êxodo a fim de mostrar como ambos os autores, Agostinho e o cartuxo desconhecido, tratam a questão da contemplação da face de Deus. Embora o cartuxo não aborde o Êxodo tanto assim, findando mesmo no capitulo 24,18.
[11] Cf. A Trindade, livro II, cap.17, p. 103; Êx. 33,20.
[12] Ibid.
[13] A Trindade, livro II, cap. 17, p. 104.
[14] Cf. A Trindade, livro II, cap. 17, p. 105.
[15] Cf. A Trindade, livro II, cap. 17, p. 105.
[16] Cf. A Trindade, l.ivro II, cap. 17, p. 107.
[17] A Trindade, livro II, cap. 17, p. 107.
[18] Cf. A Nuvem, cap. LXXI , p. 180. O livro do Êxodo é mencionado apenas de maneira implícita pelo autor. Ademais, o autor retira de A Vida de Moisés, elementos para interpretar o referido episódio (Cf. GRÉGORIE DE NYSSE. La Vie de Moïse. Trad Jean Danielou, s. j. Paris: Editions du Cerf, 1955).
[19] A Nuvem, cap. LXX, p.178.  O autor teria retirado esta ideia de: DIONÍSIO, PSEUDO-AREOPAGITA. Obras Completas. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1996, p. 339.
[20] A Nuvem, cap. LXX, p. 178
[21] Sobre isto ver também o que o escritor anônimo diz nos capítulos sessenta e nove e setenta sobre rejeitar os sentidos externos e laborar, contemplar o nada (Cf. A Nuvem, cap. LXIX, LXX, p. 175, 177).
[22] Cf. A Nuvem, cap. LXXI, p. 180. Para saber mais sobre este tema, ver sobre contemplação infusa e adquirida em: MERTON, Thomas. A Experiência Interior. Trad. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007, p. 95.
[23] Existem outras personagens utilizadas pelo autor a fim de ilustrar os degraus da vida contemplativa, porém, caberiam melhor em outro trabalho. Pois embora tratem do mesmo assunto, não lidam diretamente com a subida ao monte e o encontro com Deus, por meio da epifania, onde Ele se dá a conhecer, “escondendo-Se” na nuvem  (Cf. A Nuvem, cap.XXI, p.79-81, Marta e Maria).
[24] Cf. A Nuvem, cap. LXXI-LXXII, p. 180-181.
[25] A Nuvem, cap. LXXIII, p. 182. Os colchetes seriam acréscimos meus para dar fluência ao texto.
[26] Ibid.

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