domingo, 7 de julho de 2013

ARTIGO IV

J. J. Rosseau 
Autor: Maurice Quentin de La Tour (1704-1788)

A Profissão de Fé do Vigário Saboiano de Rousseau e A Nuvem do Não-Saber de um escritor anônimo do século XIV: semelhanças e diferenças
                                                                   José Chadan[1]
            RESUMO

            O presente artigo busca traçar paralelos entre A Nuvem do Não-Saber escrita por um autor anônimo do século XIV e A Profissão de Fé do Vigário de Sabóia, na obra Emílio, de Rousseau. A Nuvem do Não-Saber foi escrita por um monge desconhecido, provavelmente da ordem dos cartuxos, com o intuito de ensinar a um jovem, a vida contemplativa, em que a alma se une a Deus. Enquanto que A Profissão de Fé do vigário saboiano, foi escrita por Rousseau e se trata de um dialogo onde o vigário fala sobre diversos temas relacionados à fé cristã e à religião natural.
  Palavras-chave: Marta, Maria, vida contemplativa, nuvem do não-saber, Profissão de fé, religião natural.

ABSTRACT

This article aims to draw parallels between The Cloud of Unknowing, written by a fourteenth century anonymous author, and the Profession of Faith of the Savoyard Vicar from the book Emile, by Rousseau. The Cloud of Unknowing was written by an unknown monk, probably of the Carthusians order, who sought to teach a young man about the contemplative life, in which the soul is united with God, while the Profession of Faith was written by Rousseau and is a dialog in which the vicar talks about various themes regarding the Christian faith and the natural religion.
Keywords: Martha, Mary, contemplative life, contemplation, cloud of unknowing, Profession of Faith, natural religion.


Introdução

No presente artigo, busco traçar paralelos entre A Nuvem do Não-Saber de um escritor anônimo do século XIV e A Profissão de Fé, na obra Emílio de Rousseau. Embora as obras tenham sido produzidas em épocas e contextos muito distintos, uma no medievo tardio, outra no iluminismo, elas possuem muitos pontos de convergência. Sendo assim, farei as aproximações quando forem possíveis e apontarei também para as diferenças.
            Não seguirei a ordem em que o texto está posto, quer na Profissão de Fé do Vigário Saboiano, quer em A Nuvem do Não-Saber. No caso desta, porque o próprio autor não organiza a obra em sequência sistemática, ao invés disto, trata de um assunto em um capítulo, de outro no capítulo seguinte e assim por diante, muito embora exista uma coerência interna neste estilo não sequencial da obra. Já, no caso do texto rouseauniano, porque as passagens que se harmonizam com A Nuvem, encontrarem-se muito esparsas, ao longo do texto ora num lugar, ora em outro.

Profissão de fé e A Nuvem: Conselhos práticos a um jovem

            A Profissão de Fé trata-se do livro VI da obra Emílio, de Jean Jacques Rousseau. O mesmo, aborda a educação moral e religiosa que desencadeou contra o autor, a cólera da igreja[2]. Nela (a Profissão de Fé), são veementemente criticadas as religiões reveladas, principalmente o cristianismo, judaísmo e o islamismo. Todas estas, religiões que segundo Huisman “interpõem livros, sacerdotes e ritos entre a criatura e seu Deus” [3].
A Profissão de Fé é também uma conversa, como se fossem orientações do vigário ao pequeno Emílio. Em ambos os aspectos, quer de condenar uma mediação de ritos entre Deus e a criatura ou, por ser uma orientação feita ao pequeno Emílio, a obra possui paralelos com A Nuvem do Não-Saber. Esta também, tendo sido escrita como conselhos e orientações a um jovem, neste caso, um jovem em torno de vinte e quatro anos[4].

Religião natural e Voz Interior[5]

  Outro aspecto que se acha na Profissão de Fé quase que do mesmíssimo modo que está em A Nuvem do Não-Saber, não na forma estilística do texto, mas no conteúdo, é a noção da incompreensibilidade de Deus; de que Ele não pode ser conhecido nem pelos sentidos externos, nem pela inteligência natural. Que Deus se faz ver em todas as suas obras e, no entanto, quando queremos contemplá-Lo, Ele nos foge[6].  Como diz o próprio vigário, contra a razão e o pensamento:
esses raciocínios são sempre temerários, um homem prudente a eles não deve se entregar senão com temor e certo de que não é feito para aprofundá-los: pois o que há de mais injurioso para a Divindade não é não pensar nela e sim pensar errado a seu respeito[7].
Em outro lugar, reflete sobre a possibilidade de um Ser poder dar existência a seres diversos Dele. Julgando isto incompreensível, o vigário conclui que de algum modo o Ser e o Nada se converteriam um no outro[8]. Esta ideia de que o Ser de Deus é também o Nada incompreensível e obscuro, aparece também em A Nuvem, quando o cartuxo admoesta: “E não desistas de forma alguma, mas procura exercitar-te diligentemente nesse nada, com um desejo vigilante de possuir Deus[9].
Deus seria, portanto, o Ser cheio e pleno, de uma luz tão radiante quanto a do Sol, mas que, em tentando fitá-Lo com os próprios olhos, a luz de tão luminosa, não deixa ver nada. Deus se tornaria então, também este Nada. A isto, o cartuxo chama de trevas luminosas do não-saber. Para se unir a esta treva luminosa que é Deus, é necessário não pensar equivocadamente a Seu respeito (como fizeram os escolásticos e como adverte o vigário saboiano). Assim, diz o cartuxo: “Entrando logo em especulações, este jovem entende as palavras que ouve, não em sentido espiritual, como devia, mas em sentido físico e material” [10].
O cartuxo passa boa parte da obra ensinando ao principiante na vida contemplativa, de que entre a alma e Deus não deve haver nada  nem criatura, nem lembrança, nem mesmo o próprio eu daquele que contempla. Deve-se colocar tudo isto debaixo da nuvem do esquecimento[11] e assim, deixar o caminho entre a alma e Deus desobstruído.
Estes conselhos do cartuxo se harmonizam perfeitamente com as falas do vigário, quando este diz que quanto mais alguém se esforça por contemplar a essência infinita de Deus, menos a concebe, porém, é justamente quanto menos a concebe, que mais a adora[12].
Ambos, o vigário saboiano e o monge cartuxo, ensinam que se deve esquecer de si mesmo no trabalho contemplativo. O vigário diz que “o mais digno emprego de minha razão este em me aniquilar diante de ti[13]“, e o cartuxo diz: “não te deves limitar a esquecer as outras criaturas, as suas obras e os seus actos, , mas também te deves esquecer de ti mesmo”[14].

Contra a ilusão dos sentidos, opiniões e julgamentos

Outro aspecto onde A Nuvem e a Profissão de Fé se aproximam é no tocante a precaução contra as ilusões[15], provenientes, ora dos sentidos, ora das opiniões ou julgamentos[16].
O cartuxo ensina o principiante no trabalho contemplativo, a silenciar os sentidos externos, por onde lhe chegam as sensações do mundo exterior. A sensibilidade é uma das faculdades do corpo. Buscando defini-la, o cartuxo diz de que a sensibilidade é “uma faculdade da alma que comanda os sentidos e nos faz tomar consciência dos seres materiais, tanto agradáveis como desagradáveis” [17].
Sobre os sentidos externos, Merton diz que não se deve ver nos objetos do mundo externo, coisas para se manipular, com vistas ao prazer e/ou lucro, ao invés disso, o eu interior deve colocar-se diante das coisas de maneira espiritual, que consiste em vê-las sem fazê-las passar pelo crivo de nossos preconceitos, afirmação ou negação; vê-las assim, de um ponto de vista privilegiado. Para ilustrar o que diz, Merton recorre ao exemplo de uma criança e de um madeireiro vendo uma árvore. Este, a vê com os preconceitos e distorções daquele que deseja manipular a árvore para obter lucro, enquanto que a criança a vê, livre de todo e qualquer pré-conceito[18].
Já o vigário saboiano, afirma ser possuidor de sentidos, pelos quais é afetado[19] Tudo o que sente, seria proveniente de algo que lhe age exclusivamente sobre os sentidos[20].  Diz até mesmo, que a “sensibilidade é incontestavelmente anterior a nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes de ideias” [21]. Sendo aquilo que afeta os sentidos chamado matéria ou corpo. E, pela faculdade de compará-las e/ou julgá-las, é que se pode incorrer no erro, engano e na ilusão[22]. Pois, se a verdade das coisas estivesse nos objetos, não haveria engano, mas como o sujeito as percebe e compara e julga, disto advém toda espécie de erro e engano[23].
Há, contudo, uma diferença entre os sentidos e a faculdade de conhecer. É que o vigário está interessado em conhecer o movimento das coisas, a relação entre elas e a causa primeira que ele chama de Deus, ao passo que o cartuxo quando trata dos sentidos, se preocupa não com a ordem do mundo (criado) ou da ação e reação das forças da natureza, buscando encontrar uma causa primeira[24]. O cartuxo não está preocupado em deduzir a existência de Deus de algum modo, ou em mostrar como os sentidos conhecem o mundo físico, pois ao contrário do vigário saboiano, o cartuxo se preocupa apenas em mostrar como os sentidos precisam ser silenciados para que a alma se una a Deus; sem sentidos, sem imagens, sem lembrança ou memória[25] das coisas já vistas, mas unicamente pela via apofática e pelo amor[26].

Sobre a questão da Vontade em ambas as Obras

Outro tema que aparece nas duas obras é o tema da vontade. A vontade na Profissão de Fé, é por um lado, aquilo que move os corpos: neste sentido, a vontade está diretamente ligada à matéria e ao movimento. [27]
Da matéria em movimento chegamos a uma vontade, e da matéria em movimento segundo determinadas leis, chegamos a uma inteligência[28]. Deste silogismo, o vigário saboiano conclui de que o mundo é governado por uma vontade e inteligência única, que move o universo, todos os corpos e os ordena[29].
Por outro lado, a vontade para o vigário saboiano, é a faculdade humana que escolhe entre o que é bom ou o que é mal. Escolhendo, com base em seu poder de julgar. A vontade está diretamente ligada ao poder de julgar, neste caso[30]. Sendo a vontade, a faculdade que torna o homem um ser ativo e livre[31].
Somente neste segundo sentido, o cartuxo se aproxima do saboiano, afirmando que a vontade é a faculdade da alma, por meio da qual se pode deliberar sobre unir-se ou não, a Deus, deliberar sobre querer o bem ou o mau. [32]. Como ensina o cartuxo: “A vontade é a faculdade que nos torna capazes de distinguir o bem do mau” [33].
A vontade é uma das faculdades dadas ao homem, que coexistem com outras faculdades do espírito: a memória e a razão. Sendo a imaginação e a sensibilidade, faculdades do corpo e dos sentidos. A vontade é também a faculdade que não faz distinção entre o amigo e o inimigo[34], antes, trata o inimigo como se amigo fosse, sem distinção Esquecendo-se das diferenças entre as criaturas, a fim de se dedicar ao trabalho contemplativo. Por fim, a vontade está contida naquele impulsozinho secreto de amor, que dirige a alma para Deus.
Ademais, existiria uma diferença no que se refere a faculdade de julgar, em A Nuvem e na Profissão de Fé: O vigário faz uso do termo como  sendo aquilo que desencadeia a deliberação e a escolha, já o cartuxo utiliza o termo ‘julgar’ como querendo dizer: pensar mal, condenar. Advertindo ao principiante, que não devemos julgar o pecador, pois Deus o ama. Se quisermos julgar as ações, julguemos apenas o pecado, nunca o pecador[35]. Exortando de que os ativos não devem julgar os contemplativos, pois é Deus quem os julga[36].

Sobre os materialistas

Ambas as obras falam contra os materialistas. Para o cartuxo, materialistas são aqueles que, fingindo o trabalho contemplativo, se equivocam quanto àquilo que tem significado espiritual, conferindo-lhe significado material. Um dos exemplos dados pelos cartuxo seria o de, no trabalho contemplativo, ao invés de o indivíduo ficar em silêncio e sentado tranquilamente, debater-se como se estivesse em êxtase. Outro equívoco seria o de dar significado material às expressões ‘acima’, ‘abaixo’, ‘ao lado’, interpretando-as literalmente e por isto mesmo, inclinando o corpo em tais direções enquanto se dedica ao trabalho contemplativo. Diz o cartuxo, que tais manifestações são impróprias ao contemplativo, pois não passam de confusão acerca do que são expressões materiais e/ou espirituais no referido trabalho. [37]
Para o vigário saboiano, os materialistas são como os surdos que, não sabendo como uma corda pode produzir som, é posto diante de uma corda a vibrar. Ao ser explicado que é o som que produz o frêmito da corda, ele o nega, dizendo que é uma qualidade comum a todos os corpos tremerem assim. O materialista se assemelha a este surdo, que vê a corda vibrar, mas não percebe o som, ou dito de outra forma, que vê as obras criadas, porém não percebe o Criador por detrás delas[38]. Ou, como diz Ezequiel de Olaso, mostrando a complexidade desta relação dialética entre aquele que percebe Deus em suas obras (o metafísico), e aquele que não O percebe (o materialista):
Porém, os metafísicos, sem sabê-lo ou admiti-lo, são os materialistas. No entanto, se falar metafi­sicamente, todavia, tem sentido, o discurso do Vigário se oferece como o mais explicativo. Creio que o Vigário tem raciocinado ad hominem e o fez completamente consciente dos limites da sua posição. Pois, se falar metafi­sicamente não tem sentido, o materialismo e o espiritualismo são loucuras dogmáticas equivalentes e reaparece a isosthéneia. O Vigário se desfaz do seu pesado traje de combate filosófico e recomenda distanciar-se de tais pretensões. Ao retomar o registro da consciência, mudado pelas exigências da arte de disputar, brotará a voz íntima, a voz que fala em silêncio (...) [39].
Ao falar em voz que fala no silêncio ou voz que brota do interior, o vigário se aproxima muitíssimo da proposta do monge cartuxo: a via apofática, que em silêncio interior, vai até Deus.

Sobre o mal moral, a infelicidade e o pecado

O vigário diz que a infelicidade resulta do abuso de nossas faculdades que por sua vez, resulta em mal moral. O vigário parece mesmo querer apontar para o abuso cometido pelos homens quando deixam a simplicidade da vida, buscando “um bem-estar imaginário”, fruto da ambição, complicação ou invenção e cobiça. O vigário não se utiliza destes termos, porém, não achei termos mais adequados para explicitar esta parte. O que o vigário parece querer dizer, no fundo, o mesmo que diz o Eclesiastes, que     “Deus fez ao homem reto, mas eles buscaram muitas invenções” [40]. Desta busca por invenções, em deixando a simplicidade da vida e natureza criadas, resulta o abuso de nossas faculdades, o mal moral e a infelicidade.
            O mal está então, diretamente ligado ao ato de sofrer e fazer sofrer. O homem mesmo seria o autor do mal[41]. Porém, este sentimento (de sofrer) não é algo dado pela natureza, mas algo criado pelo homem[42]. E, das escolhas da criatura pelo mau, o vigário afirma que “o mau prospera e o justo permanece oprimido”[43].
O mal é então, antes de mais nada, um sentimento, o sentimento do mal. O problema do mal na Profissão de Fé, consiste em um sentimento: o sentimento de sofrer e o sentimento do mal[44].  Por outro lado, ele é produto de uma sociedade corrompida (tese que desresponsabilizaria Deus pela origem do mal, culpabilizando a sociedade civil). Como afirma Dalbosco: “A crítica à sociedade feita por Rousseau significa, ao mesmo tempo, uma crítica à origem social da maldade e, num sentido mais amplo, da própria moralidade humana” [45].
Importa ressaltar ainda, que, embora o homem seja o agente e responsável pelo mal, este, nada tem a ver com a natureza, mas com a sociedade, já que segundo Rousseau,o homem nasceria bom[46].
Já o cartuxo não fala de infelicidade, nem usa expressões como mal moral. Quando refere-se ao mal, faz isto apenas chamando-o de pecado. O pecado pode provir de pensamentos ou de ações; pode ser venial ou mortal[47] e, possui sempre alguma relação com o pecado original. Sendo a salvação para o pecado e seu consequente castigo, imiscuir-se na vida contemplativa, que purifica a alma, tanto quanto possível nesta vida[48].


Sobre a justiça divina

De acordo com o vigário saboiano, a justiça divina é inseparável da bondade. A justiça consiste, pois, em conservar a ordem das coisas criadas. E a bondade está em amar esta ordem que é fruto da justiça[49].
Diferentemente, para o cartuxo, a justiça divina não é posta como um tema, pois no caso do pecador que se convertera à vida contemplativa, tal, não se deu por mérito ou justiça divina, mas unicamente pela graça de Deus.  
O cartuxo fala de amor e de graça, mas não de justiça. Forçando os limites daquilo que propõe o cartuxo, poderíamos dizer que a justiça de Deus consistiria em dar o dom da contemplação a quem Lhe aprouver, sem mérito algum daquele que o recebe[50]. Ainda assim, nada tem a ver com ordem. Não é sobre a justiça ou a ordem da criação que se quer tratar, mas da contemplação dada gratuitamente ao pecador.


Sobre a imortalidade da alma e a morte do corpo

O vigário saboiano argumenta a favor da imortalidade da alma, tendo em vista que o homem é constituído de duas substâncias diversas: o corpo e a alma. Quando o corpo morre, a alma, imortal, permanece viva para reencontrar com Deus. O corpo se destruiria a si mesmo, pela divisão das partes, ao passo que a alma, imortal e indivisível, permaneceria.
A imortalidade da alma, segundo o vigário, depende da memória, pois não seria possível a esta, sobreviver à morte do corpo, se não se lembrasse do que fez enquanto vivia e sentia. A imortalidade da alma está fundamentada, portanto, na memória e no sentimento, que permanecem mesmo após à morte corpórea.
Já, em A Nuvem, a questão da imortalidade da alma não está posta. O mais próximo que se pode chegar sobre esta questão, seria o esquadrinhar das faculdades da alma, tal como já foi dito acima: memória, razão e vontade[51]. Estas, instrumentos para que a alma trabalhe no exercício contemplativo.


Conclusão

Rousseau diferencia a religião civil[52] da religião natural. A primeira, não tratada aqui, tem mais a ver com a organização política de uma dada sociedade, e a segunda teria relação com ouvir a voz de Deus, interior e pessoalmente.
Rousseau pela boca do vigário saboiano, aponta para uma rejeição das três religiões ocidentais institucionalizadas, a saber, o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, jamais desprezará as Sagradas Escrituras como fonte de revelação e inspiração. Muitas vezes, é ela mesma (as Sagradas Escrituras), a postular um fundamento moral ao homem que, decaído da bondade natural[53], que lhe foi dada por Deus, se corrompeu ao criar a sociedade civil.
Falando da sociedade, Merton mostra que na sociedade moderna, há falsas propostas ou operações de contemplação. A sociedade que é a Igreja, o corpo místico de Cristo, acabara por perder o verdadeiro sentido da vida religiosa, mais precisamente, da vida contemplativa. A Igreja se perdeu nos ritos e liturgias, que nada mais são que formas exteriores destinadas a conduzir o indivíduo para uma experiência profunda de Deus (e não apenas a reproduzir os ritos, formalística e exteriormente).  Outrossim, quando os indivíduos, na sociedade (Igreja ou Estado laico), confundem uma experiência profunda de Deus e do eu interior, com experiências psicóticas induzidas pelo uso de drogas ou mesmo, por disfunções mentais, acabam por ocasionar uma degeneração no próprio corpo social. A verdadeira experiência mística segundo Merton é aquela onde o indivíduo, uma vez encontrando-se com o Absoluto e com seu eu mais profundo, consegue também, ligar-se ao seu próximo, encontrando nele, o eu e o Absoluto que é Cristo em todos. Como ensina Merton: “nosso reconhecimento de nós mesmos como outros Cristos” [54]. Desta maneira, ocasionando a comunhão entre os irmãos e o progresso espiritual da sociedade como um todo, como um corpo (de Cristo)[55].  
Para Rousseau, seria preciso retornar ao estado natural, retornar à religião natural, dada ao homem por Deus, desde tempos imemoriais, a fim de que o homem alcançasse a bondade perdida. Corroborando com isto, José Benedito de A. Junior afirmaria que Rousseau,
(...) ao adotar os princípios da religião natural, pode ser considerado um teísta, mas adota também elementos fundamentais do cristianismo,como a fé em um Deus onipotente, sumamente bom e onisciente, bem como a fé nas Sagradas Escrituras e em Cristo[56].
Para o autor de A Nuvem do Não-Saber porém, é preciso ir para além das formas litúrgicas e rituais exteriores da Igreja, utilizando-os quando muito, apenas como ponte, para (induzir/produzir) uma experiência mais profunda de Deus.


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[1] Mestrando em filosofia pela PUC-SP.
[2] Cf. HUISMAN, Denis. Dicionário de Obras Filosóficas, Martins Fontes. São Paulo, 2000, p. 160.
[3] Ibid.
[4] Cf. ANÔNIMO DO SÉCULO XIV. A Nuvem do Não-Saber, Trad. D. Lino Correia Marques de Miranda Moreira, Ed vozes, Petrópolis-RJ, p. 23.
Daqui em diante, toda vez em que A Nuvem do Não-Saber for citada, colocaremos a abreviatura: A Nuvem.
[5] A religião natural em Rousseau é o oposto da religião civil. Esta, feita de mediação entre o sacerdote, a alma e Deus. aquela feita de voz interior. De maneira semelhante, o cartuxo rejeitaria (veladamente), a religião instituída, para abraçar a voz do silêncio, a voz interior.
[6]Cf. ROUSSEAU, Jean J. Emílio, ou Da Educação. Tradução Roberto Leal Ferreira. – 3ª ed. Coleção Paidéia. São Paulo: Martins Fontes. p. 313.
A partir deste ponto, todas as vezes em que citar esta obra, mencionarei apenas a abreviatura: Emílio.
[7] Emílio, p. 314.
[8] Ibid., p. 324.
[9]A Nuvem p. 174.
[10] A Nuvem, p. 125.
[11] Existem duas nuvens: a nuvem do não-saber, que é Deus mesmo. como quando Moisés sobe ao monte Sinai para ter um encontro com Deus e ao chegar lá, uma nuvem o encobre por seis dias ( Êxodo 24), ou como diz o Pseudo-Dionísio (a maior influência do cartuxo) ao afirmar que o conhecimento mais profundo que se pode ter sobre Deus é o que se alcança por meio da ignorância (Cf. A Nuvem, p. 178).
[12] Cf. Emílio, p. 325.
[13] Ibid., p. 325.
[14] A Nuvem, p. 121.
[15] Ibid., p. 127.
[16] Por julgamento, o vigário compreende o mesmo que vontade: Cf. Emílio, p. 318.
[17] Ibid., p. 169.
[18] Cf. MERTON, Thomas. A Experiência Interior. Trad. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007, p. 30.
[19] Cf. Emílio, p. 304.
[20] Ibid.
[21] Ibid., p. 330.
[22] Ibid., p. 306.
[23] Ibid.
[24] Cf. Emílio, p. 309.
[25] Cf. A Nuvem, p. 164.
[26] Ibid., p. 47.
[27] Cf. Emílio, p. 309, 310.
[28] Ibid., p. 311.
[29] Ibid., p. 313.
[30] Ibid., p. 318.
[31] Ibid.
[32] Cf. A Nuvem, p. 165.
[33] Ibid., p. 166.
[34] Ibid., p. 88.
[35] Ibid., p. 96.
[36] Ibid, p. 75.
[37] Cf. A Nuvem, p. 138.
[38] Cf. Emílio, p. 317.
[39] OLASO, Ezequiel de. Os dois ceticismos do Vigário Saboiano, sképsis, ano iv, no 6, 2011, p. 15.
[40] Ecl. 7;29.
Em nenhum momento o vigário alude explicitamente a tal passagem, mas não é impossível que seja esta a que ele tinha em mente ao tratar do abuso de nossas faculdades, da infelicidade em se deixar a simplicidade da natureza criada e do mal moral.
[41] Cf. Emílio, p. 320.
[42] Se o sofrimento não é algo dado pela natureza, mas criado, inventado pelo próprio homem, talvez eu tenha razão em dizer que o saboiano tem em mente o verso do Eclesiastes mencionado acima, ao falar deste modo. Tal como os medievais, que de tanto lerem as Escrituras, faziam citações sem explicitar da onde as tiravam, pois as tinham na memória.
[43] É possível que mais uma vez o vigário tenha em mente o livro de Eclesiastes, quando o autor diz: “há um justo que perece na sua justiça, e há um ímpio que prolonga seus dias na sua maldade”: Ecl 7;15.
[44]Cf.  COSTA, Israel de Alexandria. Rousseau e a Origem do Mal, Universidade Federal da Bahia, Bahia-Salvador, 2005.
[45] DALBOSCO, Cláudio Almir. Determinação racional da vontade humana e educação natural em Rousseau. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 135-150, jan./abr. 2007, p. 148.
[46] Cf. SILVA, Maria Aparecida Alves. Rousseau e sua Proposta de Educar as crianças sem violência. In: a bondade original da natureza humana, Goiânia, maio, 2007.
[47] Cf. A Nuvem, p. 57,58.
[48] Ibid., p. 101.
[49] Cf. Emílio, p. 320.
[50] Cf. A Nuvem, p. 104.
[51] Ver cap. 4 deste trabalho.
[52] Cf. ROUSSEAU, J. - J. Do Contrato Social. Tradução de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores), cap. VIII: Da religião civil.
[53] Gn. 1;26-30: Deus criou o homem a sua imagem e semelhança. Deu-lhe ordem para que sujeitasse a natureza criada e, “ viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom”. O homem criado por Deus era bom. Eis a bondade natural da qual Rousseau fala. O pecado e o mal moral, só adveio ao homem, após comerem o fruto da arvore da ciência do bem e do mal e, tendo-os discernido, logo Eva deu luz a Caim e Abel, o primeiro agricultor e o primeiro caçador da humanidade. Começou então, a se formar a sociedade humana e com ela, a corrupção humana e o mal moral. Pois antes, no jardim do Éden, antes de comerem do fruto da arvore da ciência, os homens eram bons por natureza.
[54] MERTON, Thomas. A Experiência Interior. Trad. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007, p. 53.
[55] Ibid. Ver o capítulo intitulado: A Sociedade e o Eu Interior.
[56] JUNIOR, José Benedito de Almeida. Rousseau e o Cristianismo, revista Interações- Cultura e Comunidade, v. 3 n. 4, 2008, p. 82. 

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