J. J. Rosseau
Autor: Maurice Quentin de La Tour (1704-1788)
A Profissão de Fé do Vigário Saboiano de
Rousseau e A Nuvem do Não-Saber de um
escritor anônimo do século XIV: semelhanças e diferenças
RESUMO
O
presente artigo busca traçar paralelos entre A Nuvem do Não-Saber escrita por um autor anônimo do século XIV e A Profissão de Fé do Vigário de Sabóia, na
obra Emílio, de Rousseau. A Nuvem do Não-Saber foi escrita por um monge
desconhecido, provavelmente da ordem dos cartuxos, com o intuito de ensinar a
um jovem, a vida contemplativa, em que a alma se une a Deus. Enquanto que A
Profissão de Fé do vigário saboiano, foi escrita por Rousseau e se trata de um
dialogo onde o vigário fala sobre diversos temas relacionados à fé cristã e à
religião natural.
Palavras-chave: Marta, Maria, vida
contemplativa, nuvem do não-saber, Profissão de fé, religião natural.
ABSTRACT
This article aims to draw parallels between The Cloud of Unknowing, written by a fourteenth century anonymous author,
and the Profession of Faith of
the Savoyard Vicar from the book
Emile, by Rousseau. The Cloud of Unknowing was written by an unknown monk, probably of the
Carthusians order, who sought to teach a young man about the contemplative
life, in which the soul is united with God, while the Profession of Faith was written by Rousseau and is a dialog in which the
vicar talks about various themes regarding the Christian faith and the natural
religion.
Keywords: Martha, Mary, contemplative life,
contemplation, cloud of unknowing, Profession of Faith, natural religion.
Introdução
No
presente artigo, busco traçar paralelos entre A Nuvem do Não-Saber de um escritor anônimo do século XIV e A Profissão de Fé, na obra Emílio de
Rousseau. Embora as obras tenham sido produzidas em épocas e contextos muito distintos,
uma no medievo tardio, outra no iluminismo, elas possuem muitos pontos de convergência.
Sendo assim, farei as aproximações quando forem possíveis e apontarei também para
as diferenças.
Não seguirei a ordem em que o texto está posto, quer na Profissão de Fé do Vigário Saboiano,
quer em A Nuvem do Não-Saber. No caso
desta, porque o próprio autor não organiza a obra em sequência sistemática, ao invés
disto, trata de um assunto em um capítulo, de outro no capítulo seguinte e assim
por diante, muito embora exista uma coerência interna neste estilo não
sequencial da obra. Já, no caso do texto rouseauniano, porque as passagens que
se harmonizam com A Nuvem,
encontrarem-se muito esparsas, ao longo do texto ora num lugar, ora em outro.
Profissão de fé e A Nuvem:
Conselhos práticos a um jovem
A Profissão de Fé trata-se do livro VI da obra Emílio,
de Jean Jacques Rousseau. O mesmo, aborda a educação moral e religiosa que
desencadeou contra o autor, a cólera da igreja[2]. Nela
(a Profissão de Fé), são veementemente criticadas as religiões reveladas, principalmente o cristianismo,
judaísmo e o islamismo. Todas estas, religiões que segundo Huisman “interpõem
livros, sacerdotes e ritos entre a criatura e seu Deus” [3].
A
Profissão de Fé é também uma
conversa, como se fossem orientações do vigário ao pequeno Emílio. Em ambos os
aspectos, quer de condenar uma mediação de ritos entre Deus e a criatura ou,
por ser uma orientação feita ao pequeno Emílio, a obra possui paralelos com A Nuvem do Não-Saber. Esta também, tendo
sido escrita como conselhos e orientações a um jovem, neste caso, um jovem em torno de vinte e quatro
anos[4].
Outro aspecto que se acha na Profissão de Fé quase que do mesmíssimo
modo que está em A Nuvem do Não-Saber,
não na forma estilística do texto, mas no conteúdo, é a noção da
incompreensibilidade de Deus; de que Ele não pode ser conhecido nem pelos
sentidos externos, nem pela inteligência natural. Que Deus se faz ver em todas
as suas obras e, no entanto, quando queremos contemplá-Lo, Ele nos foge[6]. Como diz o próprio vigário, contra a razão e o
pensamento:
esses
raciocínios são sempre temerários, um homem prudente a eles não deve se
entregar senão com temor e certo de que não é feito para aprofundá-los: pois o
que há de mais injurioso para a Divindade não é não pensar nela e sim pensar
errado a seu respeito[7].
Em outro lugar, reflete
sobre a possibilidade de um Ser poder dar existência a seres diversos Dele.
Julgando isto incompreensível, o vigário conclui que de algum modo o Ser e o Nada
se converteriam um no outro[8].
Esta ideia de que o Ser de Deus é também o Nada incompreensível e obscuro,
aparece também em A Nuvem, quando o
cartuxo admoesta: “E não desistas de forma alguma, mas procura exercitar-te
diligentemente nesse nada, com um desejo vigilante de possuir Deus”
[9].
Deus seria, portanto, o
Ser cheio e pleno, de uma luz tão radiante quanto a do Sol, mas que, em
tentando fitá-Lo com os próprios olhos, a luz de tão luminosa, não deixa ver
nada. Deus se tornaria então, também este Nada. A isto, o cartuxo chama de trevas
luminosas do não-saber. Para se unir a esta treva luminosa que é Deus, é necessário não pensar equivocadamente a Seu respeito (como fizeram os
escolásticos e como adverte o vigário saboiano). Assim, diz o cartuxo: “Entrando
logo em especulações, este jovem entende as palavras que ouve, não em sentido
espiritual, como devia, mas em sentido físico e material” [10].
O cartuxo passa boa
parte da obra ensinando ao principiante na vida contemplativa, de que entre a
alma e Deus não deve haver nada –
nem criatura, nem lembrança, nem mesmo o próprio eu daquele que contempla.
Deve-se colocar tudo isto debaixo da nuvem do esquecimento[11] e
assim, deixar o caminho entre a alma e Deus desobstruído.
Estes conselhos do
cartuxo se harmonizam perfeitamente com as falas do vigário, quando este diz
que quanto mais alguém se esforça por contemplar a essência infinita de Deus,
menos a concebe, porém, é justamente quanto menos a concebe, que mais a adora[12].
Ambos, o vigário
saboiano e o monge cartuxo, ensinam que se deve esquecer de si mesmo no
trabalho contemplativo. O vigário diz que “o mais digno emprego de minha razão
este em me aniquilar diante de ti[13]“,
e o cartuxo diz: “não te deves limitar a esquecer as outras criaturas, as suas
obras e os seus actos, , mas também te deves esquecer de ti mesmo”[14].
Contra
a ilusão dos sentidos, opiniões e julgamentos
Outro
aspecto onde A Nuvem e a Profissão de Fé se aproximam é no
tocante a precaução contra as ilusões[15],
provenientes, ora dos sentidos, ora das opiniões ou julgamentos[16].
O
cartuxo ensina o principiante no trabalho contemplativo, a silenciar os sentidos
externos, por onde lhe chegam as sensações do mundo exterior. A sensibilidade é uma das faculdades do corpo. Buscando defini-la, o cartuxo diz de que a
sensibilidade é “uma faculdade da alma que comanda os sentidos e nos faz tomar
consciência dos seres materiais, tanto agradáveis como desagradáveis” [17].
Sobre
os sentidos externos, Merton diz que não se deve ver nos objetos do mundo
externo, coisas para se manipular, com vistas ao prazer e/ou lucro, ao invés
disso, o eu interior deve colocar-se diante das coisas de maneira espiritual,
que consiste em vê-las sem fazê-las passar pelo crivo de nossos
preconceitos, afirmação ou negação; vê-las assim, de um ponto de vista
privilegiado. Para ilustrar o que diz, Merton recorre ao exemplo de uma
criança e de um madeireiro vendo uma árvore. Este, a vê com os preconceitos e
distorções daquele que deseja manipular a árvore para obter lucro, enquanto que
a criança a vê, livre de todo e qualquer pré-conceito[18].
Já
o vigário saboiano, afirma ser possuidor de sentidos, pelos quais é afetado[19] Tudo
o que sente, seria proveniente de algo que lhe age exclusivamente sobre os
sentidos[20].
Diz até mesmo, que a “sensibilidade é
incontestavelmente anterior a nossa inteligência, e tivemos sentimentos antes
de ideias” [21].
Sendo aquilo que afeta os sentidos chamado matéria ou corpo. E, pela faculdade
de compará-las e/ou julgá-las, é que se pode incorrer no erro, engano e na ilusão[22].
Pois, se a verdade das coisas estivesse nos objetos, não haveria engano, mas
como o sujeito as percebe e compara e julga, disto advém toda espécie de erro e
engano[23].
Há,
contudo, uma diferença entre os sentidos e a faculdade de conhecer. É que o
vigário está interessado em conhecer o movimento das coisas, a relação entre
elas e a causa primeira que ele chama de Deus, ao passo que o cartuxo quando
trata dos sentidos, se preocupa não com a ordem do mundo (criado) ou da ação e
reação das forças da natureza, buscando encontrar uma causa primeira[24].
O cartuxo não está preocupado em deduzir a existência de Deus de algum modo,
ou em mostrar como os sentidos conhecem o mundo físico, pois ao contrário do
vigário saboiano, o cartuxo se preocupa apenas em mostrar como os
sentidos precisam ser silenciados para que a alma se una a Deus; sem sentidos,
sem imagens, sem lembrança ou memória[25]
das coisas já vistas, mas unicamente pela via apofática e pelo amor[26].
Sobre a questão da Vontade em ambas
as Obras
Outro
tema que aparece nas duas obras é o tema da vontade. A vontade na Profissão de Fé, é por um lado, aquilo
que move os corpos: neste sentido, a vontade está diretamente ligada à
matéria e ao movimento. [27]
Da
matéria em movimento chegamos a uma vontade, e da matéria em movimento
segundo determinadas leis, chegamos a uma inteligência[28].
Deste silogismo, o vigário saboiano conclui de que o mundo é governado por uma
vontade e inteligência única, que move o universo, todos os corpos e os ordena[29].
Por
outro lado, a vontade para o vigário saboiano, é a faculdade humana que
escolhe entre o que é bom ou o que é mal. Escolhendo, com base em seu poder de
julgar. A vontade está diretamente ligada ao poder de julgar, neste caso[30]. Sendo a vontade, a faculdade que torna o homem um ser ativo e livre[31].
Somente
neste segundo sentido, o cartuxo se aproxima do saboiano, afirmando que a
vontade é a faculdade da alma, por meio da qual se pode deliberar sobre unir-se
ou não, a Deus, deliberar sobre querer o bem ou o mau. [32].
Como ensina o cartuxo: “A vontade é a faculdade que nos torna capazes de
distinguir o bem do mau” [33].
A
vontade é uma das faculdades dadas ao homem, que coexistem com outras faculdades do espírito: a memória e a razão. Sendo a imaginação e a sensibilidade,
faculdades do corpo e dos sentidos. A vontade é também a faculdade que não
faz distinção entre o amigo e o inimigo[34], antes,
trata o inimigo como se amigo fosse, sem distinção Esquecendo-se das diferenças
entre as criaturas, a fim de se dedicar ao trabalho contemplativo. Por fim, a
vontade está contida naquele impulsozinho secreto de amor, que dirige a alma
para Deus.
Ademais,
existiria uma diferença no que se refere a faculdade de julgar, em A Nuvem e na Profissão de Fé: O vigário faz uso do termo como sendo aquilo que desencadeia a deliberação e a
escolha, já o cartuxo utiliza o termo ‘julgar’ como querendo dizer: pensar mal,
condenar. Advertindo ao principiante, que não devemos julgar o pecador, pois
Deus o ama. Se quisermos julgar as ações, julguemos apenas o pecado, nunca o
pecador[35]. Exortando
de que os ativos não devem julgar os contemplativos, pois é Deus quem os julga[36].
Sobre
os materialistas
Ambas
as obras falam contra os materialistas. Para o cartuxo, materialistas são aqueles que, fingindo o trabalho contemplativo, se equivocam quanto àquilo que
tem significado espiritual, conferindo-lhe significado material. Um dos
exemplos dados pelos cartuxo seria o de, no trabalho contemplativo, ao invés de
o indivíduo ficar em silêncio e sentado tranquilamente, debater-se como se
estivesse em êxtase. Outro equívoco seria o de dar significado material às
expressões ‘acima’, ‘abaixo’, ‘ao lado’, interpretando-as literalmente e por
isto mesmo, inclinando o corpo em tais direções enquanto se dedica ao trabalho contemplativo.
Diz o cartuxo, que tais manifestações são impróprias ao contemplativo, pois
não passam de confusão acerca do que são expressões materiais e/ou espirituais
no referido trabalho. [37]
Para
o vigário saboiano, os materialistas são como os surdos que, não sabendo
como uma corda pode produzir som, é posto diante de uma corda a vibrar. Ao ser
explicado que é o som que produz o frêmito da corda, ele o nega, dizendo que é
uma qualidade comum a todos os corpos tremerem assim. O materialista se
assemelha a este surdo, que vê a corda vibrar, mas não percebe o som, ou
dito de outra forma, que vê as obras criadas, porém não percebe o Criador por
detrás delas[38].
Ou, como diz Ezequiel de Olaso, mostrando a complexidade desta relação dialética
entre aquele que percebe Deus em suas obras (o metafísico), e aquele que não O
percebe (o materialista):
Porém,
os metafísicos, sem sabê-lo ou admiti-lo, são os materialistas. No entanto, se
falar metafisicamente, todavia, tem sentido, o discurso do Vigário se oferece
como o mais explicativo. Creio que o Vigário tem raciocinado ad hominem e o fez completamente
consciente dos limites da sua posição. Pois, se falar metafisicamente não tem
sentido, o materialismo e o espiritualismo são loucuras dogmáticas equivalentes
e reaparece a isosthéneia. O Vigário se desfaz do seu pesado traje de
combate filosófico e recomenda distanciar-se de tais pretensões. Ao retomar o
registro da consciência, mudado pelas exigências da arte de disputar, brotará a
voz íntima, a voz que fala em silêncio (...) [39].
Ao
falar em voz que fala no silêncio ou voz que brota do interior, o vigário se
aproxima muitíssimo da proposta do monge cartuxo: a via apofática, que em
silêncio interior, vai até Deus.
Sobre
o mal moral, a infelicidade e o pecado
O vigário diz que a infelicidade resulta do
abuso de nossas faculdades que por sua vez, resulta em mal moral. O vigário parece mesmo
querer apontar para o abuso cometido pelos homens quando deixam a simplicidade
da vida, buscando “um bem-estar imaginário”, fruto da ambição, complicação ou
invenção e cobiça. O vigário não se utiliza destes termos, porém, não achei
termos mais adequados para explicitar esta parte. O que o vigário parece querer
dizer, no fundo, o mesmo que diz o Eclesiastes, que “Deus fez ao homem reto, mas eles buscaram
muitas invenções” [40].
Desta busca por invenções, em deixando a simplicidade da vida e natureza criadas,
resulta o abuso de nossas faculdades, o mal moral e a infelicidade.
O
mal está então, diretamente ligado ao ato de sofrer e fazer sofrer. O homem
mesmo seria o autor do mal[41]. Porém,
este sentimento (de sofrer) não é algo dado pela natureza, mas algo criado
pelo homem[42].
E, das escolhas da criatura pelo mau, o vigário afirma que “o mau prospera e o
justo permanece oprimido”[43].
O
mal é então, antes de mais nada, um sentimento, o sentimento do mal. O
problema do mal na Profissão de Fé, consiste em um sentimento: o sentimento de sofrer e o sentimento do mal[44]. Por outro lado, ele é produto de uma sociedade
corrompida (tese que desresponsabilizaria Deus pela origem do mal,
culpabilizando a sociedade civil). Como afirma Dalbosco: “A crítica à sociedade
feita por Rousseau significa, ao mesmo tempo, uma crítica à origem social da
maldade e, num sentido mais amplo, da própria moralidade humana” [45].
Importa
ressaltar ainda, que, embora o homem seja o agente e responsável pelo mal,
este, nada tem a ver com a natureza, mas com a sociedade, já que segundo
Rousseau,o homem nasceria bom[46].
Já o cartuxo não fala de infelicidade, nem usa
expressões como mal moral. Quando refere-se ao mal, faz isto apenas chamando-o
de pecado. O pecado pode provir de pensamentos ou de ações; pode ser
venial ou mortal[47]
e, possui sempre alguma relação com o pecado original. Sendo a salvação para o
pecado e seu consequente castigo, imiscuir-se na vida contemplativa, que
purifica a alma, tanto quanto possível nesta vida[48].
Sobre
a justiça divina
De acordo com o vigário saboiano, a justiça divina é inseparável da bondade. A justiça consiste, pois, em conservar a ordem
das coisas criadas. E a bondade está em amar esta ordem que é fruto da
justiça[49].
Diferentemente, para o cartuxo, a justiça divina não é posta como um tema, pois no caso do pecador que se convertera à vida
contemplativa, tal, não se deu por mérito ou justiça divina, mas unicamente
pela graça de Deus.
O cartuxo fala de amor e de graça, mas não de
justiça. Forçando os limites daquilo que propõe o cartuxo, poderíamos dizer que
a justiça de Deus consistiria em dar o dom da contemplação a quem Lhe aprouver, sem
mérito algum daquele que o recebe[50].
Ainda assim, nada tem a ver com ordem. Não é sobre a justiça ou a ordem da
criação que se quer tratar, mas da contemplação dada gratuitamente ao pecador.
Sobre
a imortalidade da alma e a morte do corpo
O vigário saboiano argumenta a favor da imortalidade
da alma, tendo em vista que o homem é constituído de duas substâncias diversas:
o corpo e a alma. Quando o corpo morre, a alma, imortal, permanece viva para
reencontrar com Deus. O corpo se destruiria a si mesmo, pela divisão das
partes, ao passo que a alma, imortal e indivisível, permaneceria.
A imortalidade da alma, segundo o vigário,
depende da memória, pois não seria possível a esta, sobreviver à morte do
corpo, se não se lembrasse do que fez enquanto vivia e sentia. A imortalidade
da alma está fundamentada, portanto, na memória e no sentimento, que
permanecem mesmo após à morte corpórea.
Já, em A Nuvem,
a questão da imortalidade da alma não está posta. O mais próximo que se pode
chegar sobre esta questão, seria o esquadrinhar das faculdades da alma, tal
como já foi dito acima: memória, razão e vontade[51].
Estas, instrumentos para que a alma trabalhe no exercício contemplativo.
Conclusão
Rousseau diferencia a religião civil[52]
da religião natural. A primeira, não tratada aqui, tem mais a ver com a
organização política de uma dada sociedade, e a segunda teria relação com ouvir
a voz de Deus, interior e pessoalmente.
Rousseau pela boca do vigário saboiano, aponta para
uma rejeição das três religiões ocidentais institucionalizadas, a saber, o
cristianismo, o judaísmo e o islamismo, jamais desprezará as Sagradas
Escrituras como fonte de revelação e inspiração. Muitas vezes, é ela mesma (as Sagradas Escrituras), a postular um fundamento moral ao homem que, decaído da bondade natural[53],
que lhe foi dada por Deus, se corrompeu ao criar a sociedade civil.
Falando da sociedade, Merton mostra que na
sociedade moderna, há falsas propostas ou operações de contemplação. A
sociedade que é a Igreja, o corpo místico de Cristo, acabara por perder o
verdadeiro sentido da vida religiosa, mais precisamente, da vida contemplativa.
A Igreja se perdeu nos ritos e liturgias, que nada mais são que formas
exteriores destinadas a conduzir o indivíduo para uma experiência profunda de
Deus (e não apenas a reproduzir os ritos, formalística e exteriormente). Outrossim, quando os indivíduos, na sociedade
(Igreja ou Estado laico), confundem uma experiência profunda de Deus e do eu
interior, com experiências psicóticas induzidas pelo uso de drogas ou mesmo,
por disfunções mentais, acabam por ocasionar uma degeneração no próprio
corpo social. A verdadeira experiência mística segundo Merton é aquela onde
o indivíduo, uma vez encontrando-se com o Absoluto e com seu eu mais profundo,
consegue também, ligar-se ao seu próximo, encontrando nele, o eu e o Absoluto
que é Cristo em todos. Como ensina Merton: “nosso reconhecimento de nós mesmos
como outros Cristos” [54]. Desta
maneira, ocasionando a comunhão entre os irmãos e o progresso espiritual da
sociedade como um todo, como um corpo (de Cristo)[55].
Para Rousseau, seria preciso retornar ao estado
natural, retornar à religião natural, dada ao homem por Deus, desde tempos
imemoriais, a fim de que o homem alcançasse a bondade perdida. Corroborando com
isto, José Benedito de A. Junior afirmaria que Rousseau,
(...) ao adotar os princípios da religião natural,
pode ser considerado um teísta, mas adota também elementos fundamentais do
cristianismo,como a fé em um Deus onipotente, sumamente bom e onisciente, bem
como a fé nas Sagradas Escrituras e em Cristo[56].
Para o autor de A
Nuvem do Não-Saber porém, é preciso ir para além das formas litúrgicas e
rituais exteriores da Igreja, utilizando-os quando muito, apenas como ponte,
para (induzir/produzir) uma experiência mais profunda de Deus.
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[1]
Mestrando em filosofia pela PUC-SP.
[2] Cf. HUISMAN,
Denis. Dicionário de Obras Filosóficas,
Martins Fontes. São Paulo, 2000, p. 160.
[3] Ibid.
[4] Cf. ANÔNIMO DO SÉCULO XIV. A Nuvem do Não-Saber, Trad. D. Lino
Correia Marques de Miranda Moreira, Ed vozes, Petrópolis-RJ, p. 23.
Daqui em diante, toda vez em que A Nuvem do Não-Saber for citada,
colocaremos a abreviatura: A Nuvem.
[5] A religião natural em Rousseau é o oposto da religião civil. Esta, feita de mediação entre o sacerdote, a
alma e Deus. aquela feita de voz interior. De maneira semelhante, o cartuxo
rejeitaria (veladamente), a religião instituída, para abraçar a voz do
silêncio, a voz interior.
[6]Cf. ROUSSEAU, Jean J. Emílio, ou Da Educação. Tradução Roberto
Leal Ferreira. – 3ª ed. Coleção Paidéia. São Paulo: Martins Fontes. p. 313.
A partir deste ponto, todas as vezes em que citar
esta obra, mencionarei apenas a abreviatura: Emílio.
[7] Emílio, p. 314.
[8] Ibid., p. 324.
[9]A
Nuvem p. 174.
[10] A Nuvem, p. 125.
[11] Existem duas nuvens: a nuvem do não-saber, que é Deus
mesmo. como quando Moisés sobe ao monte Sinai para ter um encontro com Deus e
ao chegar lá, uma nuvem o encobre por seis dias ( Êxodo 24), ou como diz o
Pseudo-Dionísio (a maior influência do cartuxo) ao afirmar que o conhecimento
mais profundo que se pode ter sobre Deus é o que se alcança por meio da
ignorância (Cf. A Nuvem, p. 178).
[12] Cf. Emílio, p. 325.
[13] Ibid., p. 325.
[14] A Nuvem, p. 121.
[15] Ibid., p. 127.
[16] Por julgamento, o vigário
compreende o mesmo que vontade: Cf. Emílio,
p. 318.
[17] Ibid., p. 169.
[18]
Cf. MERTON, Thomas. A Experiência Interior. Trad. Luiz
Gonzaga de Carvalho Neto. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007, p. 30.
[19] Cf. Emílio, p. 304.
[20] Ibid.
[21] Ibid., p. 330.
[22] Ibid., p. 306.
[23] Ibid.
[24] Cf. Emílio, p. 309.
[25] Cf. A Nuvem, p. 164.
[26] Ibid., p. 47.
[27] Cf. Emílio, p. 309, 310.
[28] Ibid., p. 311.
[29] Ibid., p. 313.
[30] Ibid., p. 318.
[31] Ibid.
[32] Cf. A Nuvem, p. 165.
[33] Ibid., p. 166.
[34] Ibid., p. 88.
[35] Ibid., p. 96.
[36] Ibid, p. 75.
[37] Cf. A Nuvem, p. 138.
[38] Cf. Emílio, p. 317.
[39] OLASO, Ezequiel
de. Os dois ceticismos do Vigário
Saboiano, sképsis, ano iv, no 6, 2011, p. 15.
[40] Ecl. 7;29.
Em nenhum momento o vigário alude explicitamente a
tal passagem, mas não é impossível que seja esta a que ele tinha em mente ao
tratar do abuso de nossas faculdades, da infelicidade em se deixar a
simplicidade da natureza criada e do mal moral.
[41] Cf. Emílio, p. 320.
[42] Se o sofrimento não é algo
dado pela natureza, mas criado, inventado pelo próprio homem, talvez eu
tenha razão em dizer que o saboiano tem em mente o verso do Eclesiastes
mencionado acima, ao falar deste modo. Tal como os medievais, que de tanto
lerem as Escrituras, faziam citações sem explicitar da onde as tiravam, pois as
tinham na memória.
[43] É possível que mais uma vez o
vigário tenha em mente o livro de Eclesiastes, quando o autor diz: “há um justo
que perece na sua justiça, e há um ímpio que prolonga seus dias na sua
maldade”: Ecl 7;15.
[44]Cf. COSTA, Israel de Alexandria. Rousseau e a Origem do Mal, Universidade
Federal da Bahia, Bahia-Salvador, 2005.
[45] DALBOSCO, Cláudio Almir. Determinação racional da vontade humana e
educação natural em Rousseau. Educação e
Pesquisa, São Paulo, v.33, n.1, p. 135-150, jan./abr. 2007, p. 148.
[46] Cf. SILVA, Maria Aparecida
Alves. Rousseau e sua Proposta de Educar
as crianças sem violência. In: a bondade original da natureza humana,
Goiânia, maio, 2007.
[47] Cf. A Nuvem, p. 57,58.
[48] Ibid., p. 101.
[49] Cf. Emílio, p. 320.
[50] Cf. A Nuvem, p. 104.
[51] Ver cap. 4 deste trabalho.
[52] Cf. ROUSSEAU,
J. - J. Do Contrato Social. Tradução de Lourdes Santos Machado. São
Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores), cap. VIII: Da religião civil.
[53] Gn. 1;26-30: Deus criou o homem
a sua imagem e semelhança. Deu-lhe ordem para que sujeitasse a natureza criada
e, “ viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom”. O homem criado
por Deus era bom. Eis a bondade natural da qual Rousseau fala. O pecado e o mal
moral, só adveio ao homem, após comerem o fruto da arvore da ciência do bem e
do mal e, tendo-os discernido, logo Eva deu luz a Caim e Abel, o primeiro
agricultor e o primeiro caçador da humanidade. Começou então, a se formar a
sociedade humana e com ela, a corrupção humana e o mal moral. Pois antes, no
jardim do Éden, antes de comerem do fruto da arvore da ciência, os homens eram
bons por natureza.
[54] MERTON, Thomas. A Experiência Interior. Trad. Luiz
Gonzaga de Carvalho Neto. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2007, p. 53.
[55] Ibid.
Ver o capítulo intitulado: A Sociedade e o Eu Interior.
[56] JUNIOR, José Benedito de
Almeida. Rousseau e o Cristianismo, revista
Interações- Cultura e Comunidade, v. 3 n. 4, 2008, p. 82.
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