Sacrifício de Isaque, Rembrandt (1635).
O SEGUNDO PROBLEMA DIALÉTICO DE
TEMOR E TREMOR: HÁ UM DEVER ABSOLUTO PARA COM DEUS?
José
Chadan(*)
Antes de iniciar propriamente esta
comunicação, é preciso dizer de que se trata. Trata-se de uma investigação acerca
do segundo problema dialético exposto na obra, Temor e Tremor,
de Soren Kierkegaard. Contudo, tal obra
não teria sido escrita por Kierkegaard, e sim, por Johannes de Silentio, um
pseudônimo que Kierkegaard utiliza em outras de suas obras também.
Segundo
Álvaro Valls, Johannes se autodenomina um “poeta da fé”. Johannes almejando
fazer um elogio da fé usa como mote o episódio de Abraão no livro de Gênesis, quando Deus ordena que
sacrifique Isaque (Cf. VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. Entre Sócrates e Cristo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 182).
No
referido episódio, Deus e a ordem do sacrifício representam o absoluto, ao
passo que o dever de pai de Abraão para com Isaque se expressa segundo os modos
do estádio ético (o geral). Colocando em
outras palavras, em relação ao segundo problema dialético de Temor e Tremor, poderíamos nos perguntar:
um indivíduo pode passar por cima da ética, das normas estabelecidas pelo
geral, a fim de obedecer a um dever maior para com o absoluto, mesmo quando
este dever fere o geral? Qual dos estádios
está sobreposto ao outro? O estádio ético estaria sobreposto ao religioso ou
o inverso? Abraão deve obedecer à ordem dada pelo Absoluto, sacrificando seu
filho ou, à norma geral, amando seu filho e preservando-lhe a vida?
No decorrer do texto escrito por
Kierkegaard, notamos que este, coloca o absoluto acima do geral. O indivíduo possui, portanto, um dever absoluto para com Deus. Contudo, surge aqui um novo problema, qual
seja: o de que o dever pertence à
categoria do geral e não á categoria do absoluto.
O
absoluto ou o estádio religioso seria representado pelo elemento do paradoxo.
Talvez devêssemos com juízo crítico, cogitar se o título do referido capitulo
não está posto em termos inadequados ou se o autor o fez propositalmente, a fim de mostrar que não se
pode juntar dever com absoluto, já que são elementos de estádios diferentes.
Seria
mais correto perguntar, então: há um dever para com o geral? Há um
paradoxo para com o absoluto?
E,
nestes termos, talvez a pergunta se fizesse mais coerente, levando em conta os
estádios e terminologia kierkegaardianas. Mas deixemos isto de lado,
colocando-nos humildemente em nosso lugar, ao invés de questionar o modus scriptum deste importante
pensador.
O estádio ético ou o geral se
relaciona com o herói trágico, que renunciando seu dever para com o
absoluto, opta por seguir a norma geral, o consenso, perdendo a chance de
caminhar solitariamente; podendo vir algum dia, a tornar-se o que de melhor
pode vir a ser, na qualidade de indivíduo. Este ápice só seria alcançado pelo
cavaleiro da fé, que renunciando o geral, escolheu pelo absoluto. Caminhando
solitariamente, dando um salto no escuro e podendo tornar-se o melhor que pode
na qualidade de indivíduo.
O herói trágico opta pela segurança
oferecida ao se unir ao geral, sendo compreendido por todos os demais homens
que também se encontram no estádio ético no caminho da vida. O cavaleiro da fé
por sua vez, toma o caminho mais difícil, o caminho que lhe traz angustia,
solidão, incompreensão e paradoxo; categorias estas, que fazem parte daqueles
que, rejeitando o geral, abraçaram seu dever absoluto para com o Absoluto
(Deus).
Outrossim, o cavaleiro da fé se
sacrifica pelo geral, a fim de, através de sua escolha pelo absoluto, lançar
luz sobre o geral, dando-lhe então (ao geral), a chance de compreender novas
formas de agir e novos estádios de vida.
Entretanto, o mais provável, é que o geral- pautado pela racionalidade-
nunca venha a compreender o cavaleiro da fé e nem o que ele vem a ensinar, e o xingue
de louco.
Isto
por que o geral se pauta pelo exterior, enquanto que o indivíduo que optou por
trilhar a vida como um cavaleiro da fé, se pauta pelo “interior do interior”, ou
melhor dizendo: se pauta por um interior dentro de seu próprio interior. Uma
espécie de interioridade que se desdobra em si mesma ou uma segunda
interioridade.
A
primeira interioridade, se assim se pode chamar, é a introjeção pessoal que
cada um faz da ética (do geral) que lhe é exterior. Já a segunda interioridade,
ou o “interior dentro do próprio interior”, como aqui o chamamos, é um
salto para além da primeira interioridade (ainda é racional e reflexiva), para
uma segunda interioridade (fundada na fé e no paradoxo, tal como representada
por Abraão).
Ilustrando o estádio ético, do herói
trágico, Kierkegaard lança mão de duas personagens: O famoso capitão romano
conhecido por Cunctator que pôde conter o inimigo e salvar o Estado e Agamenon
que renunciando Ifigênia, encontrou repouso no geral e então pôde – com o
consentimento do geral- sacrificá-la.
O
herói trágico sacrifica a própria individualidade pelo geral, para “fundir-se”
no geral, mas seu sacrifício não exige muito já que é compreendido e até mesmo,
admirado por todos. A substância, ou o elemento principal da ética é
fundamentalmente a expressão de um indivíduo através do geral (Cf. GIMENES DE
PAULA, Marcio. Socratismo e Cristianismo
em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001,
p 124).
Para ilustrar o estádio religioso do
cavaleiro da fé, o paradoxo, Kierkegaard lança mão primeiramente do episódio
bíblico de Abraão e depois, do episódio narrado no evangelho de Lucas (14, 26),
onde a narrativa afirma que Jesus teria dito que se alguém deseja segui-lo,
deve aborrecer seu pai e sua mãe (o geral). Ou dito de outro modo: quem não se
dispõe a aborrecer, ir na contramão do geral, não pode seguir a Jesus.
Em
um sentido mais rigoroso, o cavaleiro da fé se sacrifica pelo geral, expondo-se
à total incompreensão e até ao desprezo (por parte do mesmo). O cavaleiro da fé
sacrifica o geral para então, tornar-se um indivíduo. A substância, ou o
elemento principal do estádio religioso é, fundamentalmente, o
silêncio (Cf. GIMENES DE PAULA, Marcio. Socratismo
e Cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo:
Annablume: Fapesp, 2001, p. 124).
O dever absoluto de um indivíduo
para com Deus, consiste a rigor, em paradoxo e caracteriza o estádio religioso
no caminho da vida. No instante em que
Abraão vai sacrificar Isaque, a moral o acusa de odiar o próprio filho. A moral
(o geral) não o compreende e o condena segundo as normas e valores
estabelecidos pela razão. Para o geral, Abraão seria, portanto, um assassino.
No geral, a relação do indivíduo com
Deus é pois, mediada pela moral, pelos costumes; ao passo que no paradoxo, não
há mediação alguma, sendo a relação indivíduo-absoluto, imediata (sem mediação,
sem mediador).
O
herói trágico já fez seu caminho, descansando no geral. O cavaleiro da fé ao
contrário, está sempre sendo posto à prova e sendo por causa disto, tentado a
dar um passo atrás, a fim de descansar e adequar-se ao conforto proporcionado
pelo geral. Porém se o fizer, perderá para sempre a chance de tornar-se um
indivíduo.
Segundo Ricardo Q. Gouvêa em seu
livro A Palavra e o Silêncio no
capitulo décimo, Kierkegaard, ao propor o segundo problema dialético, estaria
fazendo oposição à teologias como a de Tomás de Aquino, Kant e Hegel, segundo
as quais, cada uma a seu modo, o telos
está sempre dentro do plano ético, e até mesmo Deus está dentro do plano ético.
Tudo o mais estaria fora e ele - o plano ético- tudo mais nortearia. Uma espécie de
supervalorização da racionalidade, elemento central de todo e qualquer plano
ético (Cf. GOUVÊA, Ricardo Quadros. A
Palavra e o Silêncio. São Paulo: Editora Custom, 2002, p. 243-244).
Toda forma de sistematização ética
culmina, portanto, em um dever. Dever este que, “sugando” Deus para dentro do
sistema ético estabelecido, acabaria por eliminá-lO ou levar o homem à
idolatria, posto que até mesmo deus se tornaria sujeito a algo que lhe seria superior,
isto é, o próprio Sistema Ético.
O
que Kierkegaard está propondo no segundo problema dialético de Temor e Tremor não é a eliminação total
do elemento ético, mas a ética reincorporada à esfera religiosa, sob uma nova e
mais completa forma: não mais estritamente racionalista, sujeitando-se aos
ditames sociais ou estatais, mas uma ética que contém em si, o elemento de
interioridade capaz de conferir ao indivíduo, maior autonomia e autenticidade.
Kierkegaard está tentando apontar
para o fato de que o exterior, ou a razão, tropeça em enganos e erros,
deixando-se muitas vezes guiar-se por pressupostos que a sugestionam, desviam do
rumo etc. E, para não perder-se nestas ciladas, a razão precisa reconhecer seus
próprios limites, dando lugar à fé e ao paradoxo. Estes sim reassumindo a razão
sob uma nova forma. Agora, redimida de sua pretensa autonomia e soberania, ela,
a razão, andaria lado a lado com a fé, deixando o indivíduo numa relação direta
e imediata para com Deus.
Um indivíduo, portanto, quando
tomado em sua singularidade, está a sós diante de Deus e de seu dever para com
Ele. Não podendo ser julgado, para o bem ou para o mal, pela sociedade. O que,
só poderia ocorrer quando tal indivíduo fosse considerado com a
sociedade. Ou se toma o individuo isoladamente e neste caso, ele está
verticalmente a sós em seu dever para com Deus, ou se toma o individuo dentro
da sociedade, e neste caso, ele está junto com todos, que estão igualmente
sujeitos ao geral.
O
dever para com o geral seria assim, cumprido mediante o uso das faculdades
racionais, que estabeleceriam o que é certo e o que é errado. Já o dever do
indivíduo para com Deus - ilustrado no episódio de Abraão, o cavaleiro da fé- só pode ser cumprido mediante a renuncia da razão, que se percebe limitada e o abraçar da
fé. Por meio do paradoxo
Há, portanto, um dever absoluto para com Deus. No entanto, o fato de tal dever não
passar pelo geral, não quer dizer que o geral seria destituído de valor. Quer
dizer antes, que o pensador dinamarquês pretendeu elucidar um novo modo de
viver a fé, segundo a qual o maior exemplo é Abraão. Segundo o qual a fé não provém
do exterior (da sociedade, do Estado, da igreja, nem mesmo da primeira forma de
interioridade de um indivíduo). Ao contrário, a fé advém de uma forma mais
profunda de interioridade que um indivíduo pode assumir: de uma segunda
interioridade ou como diz Gouvêa, de uma interioridade duplamente refletida (Cf.
GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Palavra e o
Silêncio. São Paulo: Editora Custom, 2002, p. 247).
Nesta segunda forma de
interioridade, o indivíduo não se encontra junto aos outros, horizontalmente
(geral), mas se encontraa sozinho diante de Deus (verticalmente). A voz para a
ação, portanto, advém desta relação única entre o indivíduo e Deus (o Absoluto),
que proporcionaria ao indivíduo uma segunda interioridade.
Numa
escala, digamos,... “para dentro”, para o estádio religioso, para “o paradoxo”,
o individuo caminharia primeiro pela exterioridade (pelo geral), passando em
seguida para a primeira forma de interioridade (para a introjeção pessoal das
normas éticas) e, finalmente, para a segunda forma de interioridade (que age
baseada na relação única e singular de um individuo frente ao Absoluto).
Retornando ao problema de Abraão, diríamos
que ele, Abraão, renunciou o geral (o exterior). Depois renunciou as normas
gerais que haviam sido introjetadas em sua primeira interioridade, para só
então, alcançar a relação autentica que pode existir, entre individuo e Deus,
que se dá somente por meio daquela segunda interioridade- a “interioridade
duplicada”. E, ainda sobre esta segunda interioridade, Gimenes de Paula afirma
de que Abraão possuí uma espécie do que ele chama, interior oculto (Cf. GIMENES
DE PAULA, Marcio. Socratismo e
Cristianismo em Kierkegaard: o escândalo e a loucura. São Paulo: Annablume:
Fapesp, 2001, p . 123).
Apesar de não se poder em tese,
compreender o cavaleiro da fé por meio da racionalidade (do geral), contudo,
Johannes de Silentio afirma de que em um certo sentido é possível compreender
Abraão. Johannes diz quase no final da obra, um pouco antes de iniciar o epílogo:
mas somente como se
compreende o paradoxo. Sou capaz, pela minha parte, de entender Abraão, vejo
porém, ao mesmo tempo, que não possuo a coragem de falar, e ainda menos de agir
como ele; contudo, de forma alguma quero exprimir, com isto, que a sua conduta
seja medíocre, quando, pelo contrário, é o único prodígio (KIERKEGAARD. Temor e Tremor, p. 302).
O dito derradeiro de
Johannes pode ser interpretado como a necessidade de cessar toda e qualquer
forma de linguagem discursiva ou conceitual quando se está diante do dever
absoluto para com Deus, qual seja: o paradoxo da fé - o paradoxo expresso no
episódio de Abraão e nunca passível de ser expresso em palavras.
Cumprir o dever
absoluto para com o Absoluto, é
renunciar o geral (a razão), abraçando em contrapartida a fé e o paradoxo. Caminhando
solitária e silenciosamente. Cumprindo o dever absoluto que ninguém mais pode
compreender, nem auxiliar no caminhar. Estando a sós, o individuo, Deus e o
dever daquele para com Este.
Aqui
termina esta comunicação sobre o segundo problema dialético em Temor e Tremor intitulado: há um dever absoluto para com Deus?.
Bibliografia
GIMENES DE PAULA, Marcio. Socratismo
e Cristianismo em Kierkegaard: o
escândalo e a loucura. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2001.
GOUVÊA, Ricardo Quadros. A Palavra e o Silêncio. São Paulo:
Editora Custom, 2002.
KIERKEGAARD,
Soren. Temor e Tremor. ed. Os
Pensadores. Trad. Carlos Grifo, Maria José Marinho, Adolfo Casai Monteiro. São
Paulo: Abril Cultural, 1979. In: <http://leandromarshall.files.wordpress.com/2012/05/kierkegaard-dic3a1rio-de-um-sedutor-temor-e-tremor-o-desespero-humano1.pdf>
VALLS, Álvaro Luiz Montenegro. Entre Sócrates e Cristo. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2000.
(*) Mestre em filosofia pela PUC-SP. Este trabalho
trata-se de uma comunicação feita pelo autor
em 2002 na Fundação Escola de
Política e Sociologia de São Paulo, que fez parte de uma série de comunicações feitas por outros palestrantes, membros da SOBRESKI (Sociedade
Brasileira de Estudos Kierkegaardianos).
E, por se tratar de um trabalho antigo, o autor achou por bem, revisá-lo
e reformulá-lo para a presente edição.
Evitamos fazer referências aos textos consultados, por uma questão de fluência. Exceto quando estritamente necessário.
Nenhum comentário:
Postar um comentário