domingo, 7 de julho de 2013

Imaginação e Pensamento Mítico

Texto produzido em parceria com meu pai.

Citamos a dor como sensação/percepção sensorial e falamos do sofrimento como percepção psíquica/ resposta da psique; sentimento que por sua vez desencadeia um processo de interação da psique e do intelecto, gerando assim os sentimentos de ansiedade, tristeza, aflição, angústia, progressivamente. O sofrimento provoca uma resposta do intelecto para a solução do incômodo, que não lograda repercute num novo sentimento, a ansiedade, que por sua vez requer a resposta do intelecto, que frustada, repercute na psique gerando um novo sentimento, a tristeza e de novo uma nova resposta do intelecto; e assim vamos até chegar a solução do incômodo ou então à angústia; e de novo a solução do incômodo ou ao desespero e falência desta relação dialética (diálogo) entre as duas percepções (psíquica e intelectual).
           
Um fenômeno interior e não necessariamente um objeto exterior pode desencadear o mesmo processo. Se nosso intelecto detecta a possibilidade futura de um acontecimento desfavorável, esta pré-ocupação provoca em nossa psique o mesmo sentimento causado pela sensação de dor, ou seja, o sofrimento, e assim, começa uma seqüência dialética- um dialogo entre a psique e o intelecto. No caso do sofrimento causado pela dor, o processo teve início por um objeto exterior e no caso da pré-ocupação, por um objeto interior, o intelecto lança sobre nós o objeto interior/pensamento o qual, de certa forma vem se associar ao objeto exterior, porque ambos representam ameaça a nossa vida- o primeiro causando a sensação de dor e o segundo a representação intelectual da mesma.
           
Tanto num como no outro caso, não obtendo a resposta/solução que lhe satisfaça, a psique pode enveredar para a sucumbência e colapso, ou procurar a solução através de um sentimento de gênese mítica que não mais dialoga com o intelecto e sim com uma instancia supra-racional; sentimento este chamado , de cuja dicotomia com a razão se fez, desde a idade média até nossos dias, objeto de profundas indagações filosóficas. Visto sob o ponto de vista do processo dialético da psique/intelecto, a fé não tira da razão a sua validade e importância nos processos do conhecimento, mas a limita subtraindo-lhe a supremacia e autoridade total.
           
É digno de nota que o mesmo processo dialético, dessa vez desencadeado por um pensamento e não mais por uma sensação, não seria possível sem a ação de um dos mais importantes recursos de nossa inteligência, chamado imaginação.
           
O intelecto extrai da memória as imagens que a priori pertencem ao mundo exterior e num ato puramente intelectual os processa livremente, associando, dissociando, separando, juntando, combinando, formando, deformando e tudo o mais que se possa imaginando fazer, atributo distintivo do homem chamado criatividade, que lhe dá o poder de agir sobre o mundo exterior/real, modelando-o segundo os padrões que cria em seu intelecto/interior. Não se dando por satisfeito com o que recebe naturalmente, o homem transforma o mundo real/exterior conforme o modelo ideal (interior/imaginário) que cria em si .
           
          A nossa imaginação não só busca representar a realidade e o mundo como é ou como se nos apresenta, mas através da criatividade que possui, se lança a representar o mundo tal como deveria ser. Enquanto os animais buscam adaptação natural ao mundo, o homem busca antes adaptar o mundo aos modelos que cria em seu imaginário mundo interior.
           
Nossa imaginação nos habilita a fabricar  objetos e instrumentos de transformação da realidade, pois é certo que a encontramos de determinada maneira, e contudo, queremos moldá-la conforme desejamos que seja. Nossa imaginação nos habilita também a elaborar um mundo imaginário que venha a modelar os nossos padrões de comportamento. O pensamento mítico que a primeira vista parece fantasia da imaginação primitiva do homem, ainda hoje se mantém atuante entre nós, variando apenas em seu conteúdo de imagens e modelos e não de gêneses e finalidades.

A representação das forças da natureza encarnadas em figuras humanizadas que, apesar de sobrenaturais formam uma sociedade espelhada na dos homens, pode ser uma tentativa de representar a sociedade como ela é, emprestando das forças da natureza as suas interações orgânicas para remetê-las a imagem que fazemos da sociedade como organismo e não simples agrupamento de pessoas, organismo este que precisa ser dotado de um ideal, de uma finalidade, ou seja, de um destino. Assim surgem os modelos míticos de homens e mulheres e de sociedades perfeitas, bem como de heróis e arquétipos que habitam a consciência humana desde a era antiga, exercendo cada um a função moral e social a que veio realizar dotando a sociedade humana de um destino e uma finalidade; uns permanecendo até nossos dias, outros dando lugar a novos mitos, ou se vestindo de nova roupagem. A ciência por exemplo, com suas conquistas recentes reivindica para si o status do grande mito, o mito que transforma o mundo, daquilo que é para aquilo que deve ser. A razão por sua vez a cada dia mais valorizada, não abre mão de sua autoridade competindo com a fé a posse e o governo de nossa consciência.
           
Ao contrário do que se diz, o pensamento mítico não é anterior nem inferior ao pensamento racional, trata-se de dois processos cada qual com suas funções, trabalhando juntos em contínua e mútua interação- tendo os dois surgido e se desenvolvido paralelamente e não como tendem a abstraí-los como  revéis  e discordes um do outro.
           
O diálogo da psique com o intelecto, chegando ao impasse, o próprio intelecto que em seus recursos dispõe da imaginação sugere à psique que busque a solução numa instância posterior imaginária. Se esta instância da consciência existe ou não, por ser de natureza supra-racional, logo escapa a análise da razão/intelecto e é forçosamente remetida de volta aos domínios da fé.
           

O nosso mundo imaginário e interior quando adquire a dimensão mítica passa a abarcar sentimentos como justiça, beleza, amor, amizade, sagrado, entre outros sentimentos que são igualmente pensamentos da mente mítica- a sagração do imaginário humano, o Mundo das Idéias como queria Platão. Tanto a República de Platão como a Utopia de Thomas More e a própria Sião Celestial da Bíblia, bem como o ideal de sociedade comunista de Karl Marx, são na verdade representações em nossas consciências de um futuro mítico e glorioso de como queremos que o mundo seja, contra tudo que o mundo é, pelo que cada sistema destes pensamentos míticos nos oferece suas receitas para alcançar-lhes os ideais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário