domingo, 22 de setembro de 2013

1º texto da série: Tirando da marginalidade para proteger




CLT & PROSTITUIÇÃO – moralidade, exploração e mercado.


Ilustração de um prostíbulo na Idade Média,
Autor desconhecido.


José Chadan


Um importante pensador que fez parte dos filósofos chamados Contratualistas, afirmou que a primeira propriedade privada que um indivíduo possui, é seu próprio corpo, ou melhor dizendo: é a força gerada por seu corpo para determinado fim ou trabalho.

        Partindo deste pressuposto, se um indivíduo emprega seu esforço em plantar feijão, o resultado deste trabalho será seu. Se outro indivíduo emprega sua força de trabalho em extrair látex da seringueira para fabricar borracha, o resultado de tal trabalho é seu. Em suma, a força que uma pessoa emprega, seu esforço corporal, determina aquilo que lhe pertence. Esta seria uma delimitação natural daquilo que pertence a alguém. Contudo, quando um indivíduo cerca um pedaço de terra e proclama “Isto é meu”, à partir daí, a propriedade passa a não ser mais dividida segundo as leis naturais, mas segundo a usurpação e acumulação (cito de cabeça). 

        Com isto, o filósofo quis chamar a atenção para (i) a propriedade natural que é o corpo e o esforço que cada um é capaz de fazer, a fim de trabalhar e produzir bens e, (ii) a "propriedade artificial", gerada pela usurpação e acumulo, que só são possíveis graças à invenção da moeda.

Não pretendemos entrar em minúcias acerca dessas querelas, apenas frisar que sendo o corpo um instrumento de trabalho, gerador de bens e riquezas, e sendo ele, a primeira propriedade privada de um indivíduo, assim, o corpo da mulher lhe pertence, sendo propriedade privada, única e exclusivamente dela.

Desta maneira, pode a mulher usar o corpo para trabalhar como bem entender e o resultado do trabalho deve tornar até ela. Contudo, às mulheres sempre foi tirado o direito ao trabalho, exceto nos lares. Apenas no século 19, com o advento das tecnologias, máquinas e Revolução Industrial, é que a mulher se viu forçada a ir trabalhar fora de casa. Mais tarde, a mulher conseguiu se emancipar, trabalhando agora, não mais a contragosto e sim, de livre e espontânea vontade, competindo em pé de igualdade com os homens.

O trabalho doméstico, o cuidado do lar, no qual a mulher costumeiramente empregava sua força de trabalho, poucas vezes recebeu o devido reconhecimento. Outrora, a própria mulher era considerada propriedade do marido. Tanto assim, que se o marido batesse nela, não seria mal visto. O trabalho nas fábricas, logo após a Revolução Industrial também não era de todo, reconhecido. Mal remunerado e exploratório. Não bastasse toda exploração e violação da mulher, as que se viam sem outra escolha, entregavam-se desde jovem, à prostituição. Sendo esta, uma das atividades mais antigas para uma mulher sem escolha. Excetuando-se desta situação, alguma eventual cultura e contexto na qual a prática da prostituição não fosse mal vista, acarretando na marginalização da mulher.

Com a regulamentação do trabalho feminino, a CLT e a emancipação da mulher nos anos 60, a mesma, viu-se reconhecida e valorizada. A mulher não é mais tida como propriedade do marido e a lei Maria da Penha tenta fazer valer o direito à dignidade da mesma. Agora, urge que a prostituição seja regulamentada, para que as mulheres que exercem tal atividade tenham direitos como qualquer trabalhador(a). Aposentadoria, carteira assinada, férias remuneradas, etc.

Não se trata aqui, de fazer um discurso feminista ou coisa assim. Trata-se antes, de enxergar a prostituição não com os olhos burgueses e moralistas, de quem a deprecia e na calada da noite, goza seus benesses sem alardear à sociedade, mas sim, de enxergá-la como uma prestação de serviços. Explico: um barbeiro, um professor, um decorador, são prestadores de serviço. Todos estes, serviços reconhecidos e regulamentados pelas leis do Estado. Semelhantemente, a prostituta precisa ser encarada como uma prestadora de serviços cuja função é proporcionar prazer à quem esteja disposto a pagar por ele.

Moralismos e burguesia à parte. Feminismos também à parte. O que não se pode admitir é que a mulher continue a ser explorada, sejam aquelas que sem opção, foram parar na prostituição, sejam aquelas que optaram voluntariamente por isto. A prostituta deveria ser vista como uma prestadora de serviços e as leis trabalhistas precisam contemplá-la. Regulamentando a profissão e incorporando deste modo, a prestação de serviços sexuais ao mercado de trabalho. Regulado pela oferta e procura e por leis trabalhistas. Tirando assim, a prostituição da marginalidade e salvando do destino trágico, tanto mulheres como travestis e afins. Pois estes, vivem à margem da sociedade, enquanto aqueles que utilizam seus serviços, vivem (hipocritamente) bem no seio da sociedade.

E, àqueles que pretenderem refutar nossa tese, apelando para uma argumentação fundada nas Sagradas Escrituras, vale lembrá-los de que em meados da Idade Média, século XIII, período em que a Santa Igreja tinha plenos poderes para legislar e julgar, a prostituição era tida como algo normal. Esta posição foi formulada por Santo Agostinho* e São Tomás**, justificadas pelo princípio da tolerância  cada qual a seu modo (Cf. A Prostituição na Idade Média, cap. VI, p. 78-79, texto e nota 17). Outrossim, a prostituta era respeitada, seja pelos clérigos, seja pelos magistrados, pois todos entendiam que ela possuía uma dupla função social: (i) ser uma válvula de escape para os instintos violentos dos homens que ao invés de cometerem crimes bárbaros, fariam sexo, aliviando a tensão e (ii) proteger o núcleo familiar, evitando escândalos maiores de adultério. 

Por conta desta função social, tida como importante, a prostituta era protegida pelas autoridades religiosas e pelos juízes. Existiam casas de prostituição bem no centro da cidade, perto da catedral e até mesmo o bispo recebia os aluguéis de tal casa. A prostituta, quando já em idade avançada  30 anos  tendo que abandonar a profissão, não passaria necessidade. Geralmente conseguindo um bom casamento com um magistrado ou uma autoridade e em alguns poucos casos, sendo admitidas em um convento. Elas eram também consideradas como auxiliadoras da família, participando de festas e eventos sociais ( Cf. A Prostituição na Idade Média, p. 70). 

Mas, infelizmente, sob o reinado de Luís, a prostituição foi jogada às margens da sociedade e as putas foram excluídas dela, sendo então equiparadas aos judeus e leprosos; cada qual, obrigado a usar um adereço de identificação por sua suposta impureza. Tamanha exclusão perpassou o renascimento e parece, chegou até 2014 (com algumas variações), causando sofrimento à mulheres que apenas queriam ou tinham que trabalhar utilizando o próprio corpo como ferramenta de serviço.

      Não somos à favor da prostituição. Não é isso! Trata-se antes, de tentar, ainda que precariamente, resgatar a humanidade das pessoas que, voluntaria ou involuntariamente, foram parar às margens da sociedade. Trata-se de protege-las de pretensos exploradores e aliciadores; de protege-las da corrupção. Pois, já que o assunto existe, é preciso trata-lo o mais honestamente possível, salvaguardando o mais que puder, a integridade dos envolvidos  sua humanidade.  E uma das maneiras de conseguir isto, é contemplando-as conforme as leis trabalhistas, retirando-as das margens e puxando-as mais para o centro da sociedade, dando a elas, a devida visibilidade. Visibilidade esta, que as protegeria de abusos e agressões.



________________________

* "Mas tire as prostitutas das coisas humanas e tudo se perturbará pela devassidão (...)". (SANTO AGOSTINHO. A Ordem. Trad. Augustinho Belmonte. Col. Patrística; 24. São Paulo: Paulus, 2008. Livro II, IV, 12, p. 209).
**" E, ainda, as prostitutas devem ser consideradas como mercenárias; de facto alugam os seus corpos para práticas torpes mas, porque trabalham com esses seus corpos têm o direito de conservar aquilo que recebem pelo seu trabalho [...]. Mas se deseja a luxúria e vende seu corpo para a satisfazer, então não vende o seu trabalho e, portanto, actua e recebe desonestamente. E, do mesmo modo, se uma prostituta se disfarça para enganar os clientes lascivos fazendo-lhes ver nela uma beleza que não existe, ela peca e não pode conservar legalmente aquilo que ganhou desta forma" (TOMÁS DE AQUINO. Summa Theologica, II, II, 32, co/17; Cf. PILOSU, Mario. A Mulher, a luxúria e a igreja na Idade Média. Trad. Maria Dolores Figueira. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 88). Aqui, São Tomás deixa claro as condições que tornariam legítimo o trabalho da prostituta e que condições o tornariam ilegitimo e fraudulento. É novamente, a igreja institucionalizando e tolerando a prostituição contanto que tal esteja sendo praticada sob determinadas circunstancias e prescrições. 




VER TAMBÉM: 


A Mulher, a luxúria e a igreja na Idade Média, de Mario Pilosu.

A Ordem, de Santo Agostinho. ed. Paulus.

A Prostituição na Idade Média, de Jacques Rossiaud. editora Paz e Terra. 

Cidade de Deus, de Santo Agostinho.

Confissões, de Santo Agostinho.

Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens, de J. J. Rousseau.

Suma Teológica, de São Tomás de Aquino. Parte II, questão II, artigo 32, coluna 17.





Nenhum comentário:

Postar um comentário